Por D. Boaventura Kloppenburg, O.F.M., Petrópolis, RJ
Aos artigos já publicados nesta revista [*] sobre o sacro, a religião, a oração, Deus, a Igreja e o cristão num mundo em secularização¹, gostaria de acrescentar algumas ponderações complementares, primeiro ainda sobre o próprio conceito de secularização e as profundas mudanças que este processo vai exigir de nós enquanto somos Igreja, para depois insistir num ponto que, nas atuais circunstâncias, me parece o mais central para a nossa presença cristã neste novo mundo que vem surgindo e se impondo como um rolo compressor.
- De um Mundo Sacral para um Mundo Secular
De modo geral se pode afirmar que aquilo que hoje denominam «secularização» deseja ser um processo de libertação do homem e, como tal, faz parte do humanismo moderno. Tal como é atualmente entendido, este processo de secularização é bastante complexo, conglobando cinco distintos movimentos: 1) enquanto deseja libertar o homem do mundo do sacro (no sentido em que esta palavra é entendida pelos historiadores fenomenologistas das religiões, como Mircea Eliade²), o processo de secularização é chamado também «dessacralização» e resulta num mundo que qualificam como profano ou secular; 2) enquanto se dirige contra o mito será um processo de «demitização», seguindo-se num mundo racional ou natural; 3) enquanto se encaminha contra a magia toma o nome de «desmagização», redundando num mundo técnico ou exorcizado; 4) enquanto orientado contra a religião é conhecido como «laicização» ou «desreligiosização», nascendo então um mundo científico ou laico; 5) enquanto se volve contra a metafísica será um processo de «coisificação» ou «desmetafisização», tendo como resultado um mundo que denominam objetivo ou positivo. Ao conjunto sacro+mito+magia+ religião+metafísica dão o nome de «mundo sacral». E o conjunto profano-+racional+técnico+científico+objetivo será então o «mundo secularizado» ou simplesmente «mundo secular». O processo complexo e geral que liberta o homem do mundo sacral e o leva ao mundo secular é o «processo de secularização» ou simplesmente a «secularização».
E desnecessário sublinhar agora a evidente e profunda diferença entre o mundo sacral e o mundo secular. Embora o mundo sacral ainda subsista em muitos lugares (principalmente no ambiente rural e nas famílias tradicionais) e em numerosas pessoas (sobretudo nas mais idosas), é, contudo, inegável a irreversibilidade do processo de secularização e, por conseguinte, a inevitabilidade do mundo secular.
Diante deste novo mundo secular há quatro possíveis atitudes:
1. O reacionarismo nostálgico, que reage contra as novidades, condena praticamente o mundo secular, chora de saudades pelo mundo sacral e faz o possível para voltar ao passado. E um fenômeno mais psicológico (às vezes até patológico) e sociológico que filosófico ou teológico. Há um tipo psicológico que é decisiva e definitivamente marcado pelo ambiente em que nasceu e foi educado, não conseguindo mais libertar-se dos condicionamentos recebidos. E há também um tipo de educação (lavagem cerebral) que instala irresistíveis reflexos condicionados no psiquismo dos educandos. São então invencivelmente teimosos e têm uma invulgar capacidade de resistência, tendendo ao isolamento e à formação de grupos ou guetos; são mesquinhos e intolerantes, não querendo sequer tomar conhecimento das novas situações e se tornam cegos diante de seus lados positivos; reagem de modo violento e, quando têm poder, autoritativamente; confiam cegamente na autoridade, na tradição, na experiência e na jurisprudência do passado.
2. O misticismo vago, que sente as insuficiências humanas de um mundo puramente profano+racional+técnico+científico+objetivo+positivo e proclama ou, melhor, vive um humanismo mais ou menos aberto para um transcendente indefinido, vago e confuso.³ São todos os atuais contestadores (hippies, etc.) da «sociedade unidimensional», denunciada por H. Marcuse. São os milhões e milhões da moderna cidade secular que se deixam guiar passivamente por astrólogos, quiromantes, cristaloscopistas, magos, pitões, cartomantes, videntes, adivinhos, bruxos, necromantes, umbandistas, babalaôs, médiuns, ocultistas, teósofos, eso- teristas, rosacruzes, cabalistas, mentalistas, ioguistas, etc. Seria verdadeiramente interessante e curioso fazer um estudo mais profundo sobre esta surpreendente presença da magia, do mito e do sacro na cidade secular.4 Seriam apenas resíduos («superstições») do mundo sacral ou, de alguma forma, exigências profundas e quase inconscientes de almas insatisfeitas com um mundo indevidamente profanizado, materializado, racionalizado, exorcizado e coisificado? — Mas o mundo secular é contestado ainda por outro tipo, e este bem mais importante, de vago misticismo, que Thomas Merton chama de «protesto do vitalismo».5 Sobretudo na literatura atual se verifica uma rebelião bastante difundida contra o vigente culto à ciência, um protesto poético contra uma visão mecanicista e desumana do mundo, um humanismo falso, facilmente avaliado por seus frutos: a guerra fria, o farisaísmo político e econômico, a completa irracionalidade da sociedade em massa e a ameaça de destruição nuclear. E uma corrente «vitalista» que oscila entre puro cientismo e pura negação da vida moderna. «E uma mística religioso-científica que aceita até certo ponto o materialismo científico, mas introduz Deus como força imanente e mística, que se manifesta no e pelo processo evolutivo. Nesta mística vitalista Deus não é o Pai eterno e Criador, mas de algum modo está no ‘vir a ser”, num contínuo processo de estar sendo feito e manifestado, como alguns diriam, no e pelo homem». E uma nova forma de panteísmo: Deus se torna consciente de si no homem, é emanação de um espírito imanente no homem enquanto ele progressivamente se cria. Contra a objetividade da ciência, o vitalismo afirma a primazia do espírito pela expansão do consciente; contra a generalização universal da abstração científica, afirma o particular, O concreto; contra o impessoal da ciência, afirma a pessoa com sua: espontaneidade, a sua singularidade e a sua pretensão ao direito de. autoexpressão e realização. «Este vitalismo — afirma Thi: Merton, bom conhecedor da literatura atual — é bem mais predominante: no clima intelectual de nosso tempo do que se pensa» (p. 58).
3. O secularismo, que aceita com entusiasmo o mundo secular; julga-o autossuficiente e humanamente satisfatório e se fecha num humanismo imanente, transformando o processo de secularização numa ideologia, para acabar formalmente no ateísmo: e sonhar com um futuro paraíso terrestre.6 Jamais podemos sublinhar bastante, mormente quando aceitamos o mundo secular ou até nos empolgamos por ele, que a secularização pode ser e de fato é uma grande tentação para o secularismo. «A civilização de hoje — diz o Vaticano II (GS 19b/253) — porque demasiadamente comprometida com as realidades terrestres (nimisrebusterrestribusintricata), pode muitas vezes dificultar o acesso a ‘Deus». Pois «o sentido de potência que o progresso técnico atual confere ao homem pode favorecer esta doutrina» [isto é: que Deus como autor e fim de todas as coisas é uma afirmação completamente supérflua) (GS 20a/255).
4. Uma quarta atitude aprova7 e aplaude em princípio o processo de secularização e seu consequente mundo secular, mas reconhece sua ambivalência («capaz de realizar o ótimo e o péssimo»: GS 9d/229) e proclama a necessidade de complementá-lo e consumá-lo em Cristo. «A Igreja acredita que Cristo morto e ressuscitado para todos, pode oferecer ao homem, por seu Espírito, a luz e as forças que lhe permitirão corresponder à sua vocação. Ela crê que não foi dado aos homens sob o céu outro nome no qual seja preciso se salvarem. Acredita igualmente que a chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontram no seu Senhor e Mestre» (GS 10b/231).
Mas complementar e consumar em Cristo o mundo secular quer dizer que
— devemos levar a Santificação ao mundo dessacralizado para que não se profanize;
— devemos levar o Símbolo ao mundo desmitificado, para que não se racionalize;
— devemos levar o Espírito ao mundo desmagizado, para que não se materialize;
— devemos levar a Fé e a Igreja ao mundo desreligiosizado, para que não se laicize;
— devemos levar a Sabedoria e a Oração ao mundo desmetafisizado, para que não se coisifique.
Eis um amplo e rico programa para nós cristãos e para a nossa presença cristã no mundo secular do momento atual. Só assim seremos o que temos o dever de ser: a luz do mundo, o sal da terra, o fermento na massa, a bandeira levantada entre as nações, a cidade construída sobre o monte, a vida e a alma do mundo: «o que a alma é no corpo isto sejam os cristãos no mundo»: quod anima est in corpore, hoc sint in mundo christiani (LG 38/99). Nossa ausência cristã neste momento crucial da história, quando se opera a passagem de um mundo sacral para um mundo secular, seria a morte do próprio homem. Bem lembrava o Papa Paulo VI na PopulorumProgressio (n. 42) que «o homem pode organizar a terra sem Deus, mas sem Deus só a pode organizar contra o homem: humanismo exclusivo é humanismo desumano». O mundo secular como tal, puramente secularizado e entregue a si, não é ainda um mundo humano, muito menos cristão: falta-lhe a alma, a vida, o fermento, o sal e a luz. E Cristo veio precisamente para ser tudo isso; e deixou neste mundo Sua Igreja com a específica missão de continuar esta Sua obra, para ser «como que o fermento e a alma da sociedade humana» (GS 40b/322), o «fermento da realidade social da história» (GS 44a/339), o «fermento no mundo» (AA 2b/1335). Roger Schutz, o Prior de Taizé, enviou em princípios deste ano ao Concílio Pastoral Holandês uma mensagem na qual dizia: «Para que o homem não seja vítima do homem, somos compelidos a ir até os limites extremos do dom de nossa vida [referia-se positivamente ao dom de si mesmo pelo celibato). Mas se, por causa de nossa generosa abertura ao homem, começam a desaparecer de nossa vida os sinais de Deus, adquirimos apenas uma capacidade de participação na vida dos homens de hoje. Permaneceremos então numa dimensão à qual chegaram também os não-cristãos. Somos incapazes de fazer pressentir ao homem o advento de Deus. Tudo se perde se, através de nossa participação na continuidade da Igreja, não se deixa mais pressentir este lugar de eternidade ao qual os não-crentes são por vezes mais atentos que tais cristãos» (SEDOC 3,42).
Hoje, para poder cumprir sua missão, a Igreja deverá aprender a estar presente e atuante no mundo secular, mas sem ter para isso nem a experiência nem a jurisprudência do passado. Sua regra fundamental será sempre esta, assim formulada pelo último Concílio: «Como Cristo, por Sua encarnação, se ligou às condições sociais e culturais dos homens com quem conviveu, assim deve a Igreja inserir-se em todas estas sociedades, para que a todas possa oferecer o mistério da salvação e a vida trazida por Deus» (AG 10/885). Mas a Igreja (sua mensagem e suas instituições: liturgia, sacerdócio ministerial, vida religiosa, etc.) nasceu e se encarnou ou tomou formas concretas num mundo ainda caracteristicamente sacral: dele recebeu os veículos de transmissão: estruturas, categorias, conceitos, expressões, símbolos, analogias, roupagem, colorido, tudo aquilo que hoje denominamos imagem (Bild). Por isso, quando apresenta sua mensagem com estes veículos ao novo mundo secular, dá aos homens já secularizados, principalmente aos jovens, a impressão de ser anacrônica, arcaica, antiquada, obsoleta e superada e, em consequência, inaceitável ou até ininteligível. Sem embargo, essencialmente mensageira, ela é de fato portadora de uma importante mensagem divina (o «Evangelho»), válida para os homens de todos os tempos e, portanto, também para os da era secular, para os que vivem num mundo profano+racional+técnico +científico+objetivo+positivo. Mas ela não estará capacitada para cumprir esta sua divina missão se não souber inserir-se ou encarnar-se no mundo secular: dele tomará os veículos de transmissão: estruturas, categorias, conceitos, expressões, símbolos, analogias, roupagem, colorido, tudo aquilo que agora denominamos «imagem». Sua imagem, hoje, terá que ser necessariamente secular ou então o mundo secular não a aceitará. Foi o que declarou o Papa João XXIII quando disse enfaticamente aos Padres Conciliares na abertura do Concílio Vaticano II (11-10-1962): Absoluta fidelidade à doutrina autêntica, mas esta «estudada e exposta por meio de formas de indagação e formulação literária do pensamento moderno. Pois uma coisa é a substância da antiga doutrina do depositumfidei e outra é a formulação que a reveste e é disto que se deve — com paciência se necessário — ter grande conta, medindo tudo nas formas e proporções do magistério prevalentemente pastoral». Foi também este o propósito inicial dos mesmos Padres Conciliares, quando em sua primeira Mensagem à Humanidade (20-10-1962) declararam: «Procuraremos apresentar aos homens de nosso tempo, integra e pura, a verdade de Deus de tal maneira que eles possam compreender e a ela espontaneamente assentir».
Mas com isso não se quer afirmar, nem mesmo insinuar, que já não podemos ou devemos mais apresentar ao homem de hoje o conteúdo ou o «mistério da fé», ou que, tudo quanto lhe anunciamos, deva ser puramente racional e empírico ou experimental. Também para o homem secular haverá necessariamente «verdades de fé», que, como tais, são exclusivamente conhecíveis à luz da fé. Também o Vaticano II, retomando a doutrina do Vaticano I (Dz 1759), «declara que há duas ordens distintas de conhecimento, a saber, a da fé e a da razão» (GS 59c/395). E, como dizia o Vaticano 1, «os mistérios divinos, por sua própria natureza, excedem de tal modo a inteligência criada que, mesmo depois de revelados e aceitos pela fé, permanecem ainda encobertos com os véus da mesma fé e como que envoltos em um nevoeiro, enquanto durante esta vida vivermos ausentes do Senhor; pois andamos guiados pela fé e não pela contemplação» (Dz 1796). Ou, como dizia o Apóstolo: «Agora vemos por um espelho e obscuramente (dinigma), então veremos face a face. No presente conheço só em parte, então conhecerei como sou conhecido» (1 Cor 13,12). Este princípio será sempre válido, também num mundo dessacralizado e secularizado. Mas mesmo assim jamais haveremos de perder de vista que o ato de fé é sempre uma ação do Espírito Santo, que «a todos faz encontrar doçura em consentir e crer na verdade», como ensinam os Concílios Arausicano II (Dz 180), Vaticano 1 (Dz 1791) e Vaticano II (DV 5/166). «A fé esclarece todas as coisas com luz nova e nos permite conhecer o desígnio de Deus sobre nossa vocação integral e, por isso, dirige nossa mente para soluções plenamente humanas» (GS11a/232). A fé não é um peso desagradável que nos é imposto, mas é um rico dom divino a ser aceito com liberdade e alegria, com valioso auxílio nas nossas limitações humanas, como brilhante farol no nosso tatear em meio ao nevoeiro da peregrinação, como poderosa libertação no bruxuleio da razão. A fé, na verdade, nos eleva, engrandece e encoraja. A fé nos permite contornar os abismos, evitar os escolhos, andar na estrada certa e caminhar com tranquilidade em direção ao Pai. Não é a mensagem ou o conteúdo da fé, são os veículos humanos da fé que tornam reticente a atitude do homem secular diante de nossa pregação. Por isso, o que há de ser mudado não é a mensagem, mas sua roupagem. A aceitação do conteúdo da fé a deixaremos tranquilamente à ação do Espírito Santo em cada um dos nossos ouvintes; mas a aceitação da roupagem da fé será o grande trabalho pastoral dos homens da Igreja de hoje.
Do programa acima mencionado tomarei agora apenas o primeiro ponto, que anunciava a necessidade de levar a Santificação ao mundo dessacralizado para que não se profanize. Há nesta proposição três afirmações, a saber:
— que o mundo dessacralizado e secularizado é em si e como tal bom e mesmo excelente, merecendo nossa colaboração e aplauso8;
— que este mundo assim puramente dessacralizado ou secularizado é em si e como tal insuficiente do ponto de vista humano e incompleto à luz da revelação cristã (e este será o assunto do presente artigo);
— e que, por isso mesmo, o processo de dessacralização ou secularização é em si e como tal também ambíguo ou ambivalente, capaz também de levar à total profanização do homem e de seu mundo, isto é, ao ateísmo ou ao secularismo. Mesmo reconhecendo os valores positivos da secularização e que o progresso humano pode ajudar a felicidade verdadeira dos homens, o Concílio «não pode deixar de fazer ressoar a palavra do Apóstolo: “Não vos conformeis a este mundo” (Rom 12,2), isto é, àquele espirito de vaidade e malícia que transforma a atividade humana, ordenada ao serviço de Deus e do homem, em instrumento de pecado» (GS 37c/314).
2. O Conceito Neotestamentário de «Santidade»
Desde logo nossa atenção cai sobre um fato bastante surpreendente: que a palavra «Santos» era o termo técnico mais usado para designar os primeiros cristãos. Vale a pena percorrer a lista dos lugares do Novo Testamento nos quais os cristãos são simplesmente chamados Santos (hágioi) ou Irmãos Santos (adelphoihágioi): Atos 9,13. 32.41; 26,10; Rom 1,7;8,27; 12,13; 15,25.26.31; 16,2.15; 1 Cor 1,2; 6,1.2; 14,33; 16,1.15; 2 Cor 1,1; 8,4; 9,1.12; 13,12; Ef 1,1.15.18; 2,19; 3,8.18;4,12; 5,3; 6,18; Filip 1.1; 4,21; 4,22; Col 1,2.4.12.26; 3,12;1 Tess 5,27; 2 Tess 1,10; 1 Tim 5,10; Filêm 5,7; Heb 3,1; 6,10;13,24; Jud 3; Apoc 5,8; 8,3.4; 11,18; 13,7.11; 14,12; 16,6; 17,6;18,20.24; 19,8; 20,9; 22,21. E às vezes as expressões são solenes: «Paulo… à Igreja de Deus em Corinto, aos santificados em Cristo Jesus, chamados a ser santos» (1 Cor 1,2); «à Igreja de Deus em Corinto, com todos os santos de toda a Acaia» (2Cor 1,1); «a todos os amados de Deus, chamados santos, que estais em Roma» (Rom 1,7).
Antes de estudarmos o conceito neotestamentário de «santo», «santificação» e «santidade», convém observar que há uma diferença bastante notável no uso e no sentido destas palavras no AT e no NT: quanto ao uso, no AT se fala muito mais da «santidade» das coisas (objetos para o culto, vestes, etc.), dos lugares (templo, principalmente) e dos tempos (sábado) que da «santidade» das pessoas (sacerdotes) e da comunidade (povo «santo» de Javé); no NT se fala quase unicamente da «santidade» das pessoas (todos os batizados) e da comunidade, e só poucas vezes da «santidade» das coisas (e então sempre com explícita ou implícita referência ao AT, exceto em 1 Tim 4,5); quanto ao sentido, no AT o «santo» designa as coisas, lugares, tempos e também pessoas (sacerdotes) reservados ao culto oficial e público de Javé ou ao serviço religioso de Israel e inclui os elementos de «separação do profano» (com rigorosas regras de intangibilidade ou tabu) e «reservado para Deus» ou «propriedade de Deus», com a consequente atitude de respeito, veneração ou temor, portanto num sentido mais de relação extrínseca, ritual e cultual de pertença a Deus; no NT desaparece este tipo de «santidade» das coisas, tempos e lugares, e a «santidade» das pessoas é indistintamente afirmada de todos os cristãos e nem uma vez reservada especialmente às pessoas que administram o primitivo «culto» cristão («liturgia»). Já temos aqui um primeiro e radical processo de «dessacralização», com relação ao Antigo Testamento.
Não basta, pois, recorrer simplesmente ao sentido vetero-testamentário do «santo» para aplicá-lo, assim, sem mais, aos «santos» da Nova Aliança. Que significado tem, então, no Novo Testamento, a palavra «santo» e seus derivados «santificar», «fazer santo», «santidade»? Por que são os primeiros cristãos simplesmente «santos»? Que há neles para justificar um título tão consequentemente usado?
Felizmente, os textos são bem numerosos e suficientemente ricos em seus contextos para podermos apanhar com bastante fidelidade seu sentido ou conceito. Podemos dividi-los em duas categorias:
1. Santidade objetiva graciosamente conferida por um dom divino: O motivo principal ou radical porque os cristãos são chamados «santos» está numa ação divina operada neles. O «ser santo» é uma realidade objetiva produzida por Deus, uma espécie de «nova criação», pela qual o fiel é atingido em sua interioridade profunda, operando nele uma radical mudança ou transformação e conferindo-lhe vida nova. Meditemos algumas passagens:
1 Cor 6,11: Depois de enumerar um catálogo de vícios, o Apóstolo conclui: Vós éreis isto, «mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espirito de nosso Deus». A oposição entre o outrora e o agora indica bem uma situação ou um estado novo. O «fostes santificados» está entre duas expressões que, ambas, significam uma purificação, mudança ou restauração interior, produzida por Deus e iniciada com a entrada na comunidade cristã. E as três palavras («lavados», «santificados», «justificados») querem designar principalmente aquela interior renovação e não apenas esta entrada na comunidade ou uma mera situação de «escolhidos» ou «separados» por Deus.
Col 1,21s: «E a vós, dantes estranhos e inimigos pela disposição da alma demonstrada em obras más, agora, porém, [Cristo] vos reconciliou no corpo da sua carne, pela morte, para vos apresentar diante d’Ele santos e imaculados e irrepreensíveis». Temos outra vez a mesma oposição entre outrora-agora. De estranhos e inimigos «pela disposição da alma», passaram a ser santos. «Santidade», aqui, significa reconciliação com Deus que transforma interiormente («disposição da alma») o «inimigo» em «santo», imaculado e irrepreensível. — Em outro texto, também com a oposição outrora-agora, embora não use a palavra «santificação», O Apóstolo descreve assim seus efeitos: «Pois também nós dantes fomos néscios, desobedientes, extraviados, escravos de toda a sorte de concupiscências e prazeres, vivendo na maldade e na inveja, dignos de ódio e odiando-nos uns aos outros. Mas apareceu então a benignidade e o amor humanitário de Deus, nosso Salvador. Não movido pelas obras justas que houvéssemos feito nós, mas pela Sua misericórdia, Ele nos salvou mediante o batismo da regeneração e renovação do Espírito Santo, que ele abundantemente derramou sobre nós por Jesus Cristo, nosso Salvador, a fim de que, justificados por Sua graça, sejamos, segundo a esperança, herdeiros da vida eterna» (Tito 3,3-7). Há muita riqueza neste texto, que o leitor mesmo poderá analisar, para verificar que, segundo o Apóstolo, algo de importante foi operado em nós por Deus, «não movido pelas obras justas que houvéssemos feito nós», mediante o batismo, e que nos transformou profundamente: regeneração, renovação, justificação, abundante infusão do Espírito Santo. Segundo estes elementos bíblicos, a «santiadde» (ou o estado operado por Deus em nós pelo batismo) não consiste apenas numa ação de purificação ou perdão de pecados, mas inclui também elementos positivos que nos transformam em amigos ou até filhos de Deus e herdeiros da vida eterna: «Recebestes o espírito de adoção, pelo qual clamamos: Abba, Pai! O próprio Espírito atesta ao nosso espírito de que somos filhos de Deus. Se filhos, também herdeiros, herdeiros de Deus, co-herdeiros de Cristo…» (Rom 8,15-17).
2 Tess 2,13: O Apóstolo agradece a Deus porque desde o princípio os escolheu «para vos salvar pela santificação (hagiasmós) operada pelo Espírito e pela fé na verdade». Aqui aparece o tema de escolha ou eleição; mas eleição em vista de algo bem mais importante. E vem o conceito da salvação operada «pelo Espírito» e «pela fé na verdade». O agradecimento do Apóstolo é motivado pela maldade dos que na parusia serão rejeitados (vv. 7-11). No v. 12 o «não crer na verdade» era sinônimo de «comprazer-se na iniquidade»; por isso o «crer na verdade» significa viver uma vida na justiça, Portanto a «santificação», aqui, insinua uma radical mudança interior do homem, para uma vida ética perfeita, «guardando os mandamentos recebidos» (v. 15) e vivendo «em toda obra boa e palavra boa» (v. 17).
Ef 1,4: Deus nos escolheu em Cristo já antes da constituição do mundo «para sermos santos e imaculados diante d’Ele em amor». Santidade inclui também escolha e vocação, mas não está só nisso. Os versículos seguintes especificarão toda essa nova situação: «predestinando- nos à adoção de filhos» (v. 5); redenção «pela virtude do sangue de Cristo» (v. 7); remissão dos pecados (v. 7); riqueza de Sua graça profusamente derramada em nós (v. 8); melhor conhecimento do mistério de sua vontade (v. 9); herdeiros do céu (v. 11); selados com o selo do Espírito Santo (v. 13). Ser cristão — explica o Apóstolo aos mesmos efésios (4,22ss) — significa «despojar-se do homem velho, corrompido pelas concupiscências falazes, para operar uma transformação espiritual da mentalidade e revestir-se do homem novo, criado segundo Deus em justiça e verdadeira santidade». Aqui, cada palavra merece nossa meditação e não necessita de explicação.
Ef 5,26s: Cristo Se entregou por Sua Igreja «para santificá-la, purificando-a mediante o lavacro da água com a palavra, a fim de apresentá-la a Si gloriosa, sem mancha ou ruga ou coisa semelhante, porém santa e irrepreensível». Aqui explica o Apóstolo — e isso é importante — como os efeitos da morte de Cristo são aplicados ou comunicados a cada um em particular (pelo batismo). A «santidade» aparece outra vez como uma profunda transformação e embelezamento interior e até como uma positiva glorificação (éndoxos: glorioso, insigne).
1 Cor 6,1s: Os cristãos são chamados simplesmente de «santos» (hágioi), os outros, os gentios, o mundo, são «injustos» (ádikoi).
Heb 10,10-18: Ensina o Apóstolo como devemos entender a santificação pelo sacrifício de Cristo: «somos santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, uma vez para sempre». O sacrifício de Cristo é o único que apaga pecados (v. 12); por ele somos «santificados» (vv. 10 e 14).
1 Tess 5,23: «O Deus da paz vos santifique completamente (holo- telés) e conserve-se inteiro o vosso espírito, e a vossa alma e o vosso corpo sem mancha para a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo». E” Deus mesmo (autóshoTheós), insiste o Apóstolo, quem opera esta «completa» santificação.
Rom 8,27ss: Os «santos» do v. 27 são descritos no v. 29 como «os que de antemão Deus conheceu, como também os predestinou a serem conformes à imagem de Seu Filho, … e aos que predestinou, a esses chamou, e os que chamou, a esses justificou, e os que justificou a esses também glorificou». Santidade quer dizer: predestinação, vocação, justificação, glorificação.
Col 1,13s: O Apóstolo descreve a sorte dos «santos»: são liberta- dos do poder das trevas, transportados ao reino do Filho de seu amor, «no qual temos a redenção, a remissão dos pecados».
Todos esses textos bíblicos nos permitem concluir que o conceito neotestamentário de «santo» é amplo e rico, não precipuamente ritual ou cultual (disto quase nem se fala e isso é digno de nota), nem meramente moral ou ético; e designa um estado ou homem novo, graciosamente operado por Deus, em Cristo, no Espírito Santo, um verdadeiro renascimento, uma regeneração, uma transformação radical, uma renovação profunda, uma total restauração; indica uma libertação do poder das trevas, o perdão ou a remissão dos pecados, redenção e purificação, uma condição de irrepreensibilidade e imaculidade; revela uma situação nova de justificação, de união íntima com Deus, até de glorificação, com infusão da graça divina, sobretudo do Espirito Santo, com predestinação para ser conforme à imagem do Filho, com o privilégio da adoção de filhos de Deus e a capacitação para a herança divina e o louvor do Deus vivo. «Temos parte na santidade de Deus» (Heb 12,10). «Nascemos de Deus» (cf. 1Jo 2,21; 4,7; 5,1.18). E” na verdade aquilo que se chamou também de «graça habitual santificante». «Vossos filhos são agora santos» (1 Cor 7,14). A santificação é um processo que o Apóstolo descreve como novidade: «Com Cristo fomos sepultados pelo batismo, para participarmos da morte, a fim de que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim também nós andemos em novidade de vida» (Rom 6,8). «Por conseguinte, aquele que está em Cristo é criatura nova. O velho passou, fez-se um mundo novo. Mas tudo isso vem de Deus, que por Cristo nos reconciliou consigo» (2 Cor 5,175). Assim o Apóstolo pode dizer: «Agora somos (= ontológico) filhos de Deus, embora ainda não se haja manifestado o que havemos de ser. Sabemos que, quando Ele aparecer, seremos semelhantes a Ele» (1 Jo 3,2); ou ainda: «agora a vossa vida está oculta com Cristo em Deus; quando Cristo, vossa vida, se manifestar, então também vós vos manifestareis com Ele, em glória» (Col 3,3s). Assim compreendemos o júbilo com que São Pedro, no início de sua primeira carta, canta a grandeza da vocação cristã: «Ben- dito seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo que na sua grande misericórdia nos regenerou para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos, para uma herança incorruptível, incontaminada e imarcescível, reservada nos céus para vós. Pelo poder de Deus sois guardados, mediante a fé, para a salvação que está para se manifestar, no tempo último. Por esse motivo exultais… e vos haveis de regozijar com um gôzo inefável e glorioso ao alcançardes a meta de vossa fé, a salvação das almas» (1 Ped 1,5-9).
2. Santidade subjetiva completada por nossos esforços: A santidade objetiva ou ontológica, graciosamente conferida ou operada em nós por Deus, é como um novo princípio de vida divina, a «semente de Deus» (1 Jo 3,9), uma «semente incorruptível» (1 Ped 1,23), colocada em nós e que deve viver, desabrochar, florescer e produzir frutos. Mas esta ulterior «santificação» é também resultado das nossas obras e dos nossos esforços humanos. Ainda aqui ouçamos ao menos algumas recomendações apostólicas:
2Cor 7,1: «Por termos tais promessas, caríssimos, purifiquemo-nos de toda mancha da carne e do espírito, rematando a obra da santificação no temor de Deus». «Santidade», aqui, é um estado que o cristão tem em si, recebido por Deus, mas que deve ser «rematado» (epi-telúntes, de epi-teléo: levar à perfeição, ao fim) e levado à perfeição pelo esforço próprio.
1 Tess 3,1Iss: «Que o mesmo Deus e Pai nosso, e Nosso Senhor Jesus Cristo, dirija para vós os nossos passos. Que vos aumente e faça abundar em caridade de um para com os outros, e para com todos, do mesmo modo que nós a sentimos por vós, a fim de fortalecerdes os vossos corações e vos tornardes irrepreensíveis na santidade, diante de Deus, nosso Pai». A caridade ou o amor aparece aqui como a ação mais per- feita do homem e a característica da santidade subjetiva.
Rom 6,19: «Como outrora pusestes vossos membros a serviço da impureza e da iniquidade para a iniquidade, assim entregai agora vossos membros ao serviço da justiça para a santidade»; e no v. 22: «agora, livres do pecado e servos de Deus, tendes por fruto a santificação e por fim a vida eterna».
1 Ped 1,15s: «Como aquele que vos chamou é santo, sede também vós santos em toda a vossa conduta, porque está escrito: Sede santos, porque eu sou santo».
Ef 5,3: «Quanto à fornicação e a qualquer gênero de impureza ou de cobiça, nem seus nomes sejam pronunciados entre vós, como convém a santos».
Col 3,12: «Vós, porém, como eleitos de Deus, santos e amados, revesti-vos de sentimentos de carinhosa compaixão, bondade, humildade, mansidão, longanimidade, suportando-vos e perdoando-vos mutuamente…>.
Gál 5,22: Já que, como santos, os fiéis receberam o Espírito Santo, devem também produzir os frutos do Espírito; e os «frutos do Espirito são: caridade, alegria, paz, longanimidade, afabilidade, bondade, fidelidade, mansidão, continência»; pois «se vivemos do Espirito, andemos também segundo o Espirito» (v. 25).
1 Tess 4,3: «Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação».
Apoc 22,11: «O santo santifique-se mais».
Para que o homem seja «santo» no sentido neotestamentário da palavra, não basta que ele se realize plenamente enquanto homem (seria a «secularização» do homem); é necessário que receba direta e gratuitamente de Deus algo mais; e esse «algo mais», como vimos, é para o homem de extrema importância, é mesmo decisivo; e é o que o Novo Testamento chama de «santidade», «santificação», «santo». O processo de secularização do homem e do mundo (processo excelente em si e resultado do esforço humano) não é ainda um processo de santificação do homem e do mundo. Trabalhar para a secularização do homem não é ainda sinônimo de trabalhar para a sua santificação. Também o homem secularizado deve ser santificado. Sem esta ulterior santificação, o homem, por mais secularizado que seja, ainda não é revestido de Cristo, cheio do Espírito Santo, filho adotivo de Deus e herdeiro do céu. A aceitação positiva do processo de secularização não nos deve levar ao naturalismo. A secularização seria perfeitamente realizável sem Cristo. Ser homem ainda não é sinônimo de ser cristão; mas no Novo Testamento ser cristão é sinônimo de ser santo.
Para compreender a profundeza e o alcance desta autêntica novidade de vida que graciosamente nos é dada por Deus e comunicada inicialmente pelo Batismo, seria necessário inserir aqui tudo que nos é ensinado pelo Apóstolo ou pela Igreja sobre os efeitos do Batismo; seria necessário recordar também a maravilhosa doutrina do Apóstolo e da Tradição sobre o Corpo Místico de Cristo ou a nossa união íntima e vital com Cristo: Somos uni- dos a Cristo morto e ressuscitado de tal maneira que nos é in- fundida ou comunicada a própria vida humano-divina de Cristo: vita Christi in credentesdifunditur, ensina o Vaticano II (LG 7b/13). Em Cristo e com Cristo somos como que divinizados. «Cristo está em nós e nós em Cristo», repete incessantemente o Apóstolo: «Já não vivo eu: é Cristo que vive em mim» (Gál 2,20); e o Apóstolo conclui: «Não posso tirar O valor à graça de Deus, porque, se pela Lei se obtém a justiça, então Cristo morreu em vão» (v. 21); ou, poderíamos dizer hoje: se pela Secularização se obtém a santificação, então Cristo morreu em vão. «Permanecei em mim, como eu permaneço em vós», recomenda o Senhor aos Apóstolos; e acrescenta, recorrendo a uma audaz analogia: «Eu sou a videira, vós sois os sarmentos…»: como o sarmento não pode dar fruto por si mesmo, assim também vós não podereis produzir frutos se não permanecerdes em mim, «porque sem mim nada podeis fazer». A Secularização por si, sem Cristo, não conduz ao Pai, nem nos une com o Filho, nem nos inunda do Espírito Santo. Mas «todo aquele que segue a Cristo, o homem perfeito, torna- se também mais homem» (GS 41a/325).
3. Nossa Missão Cristã de Santificar
O Concílio Vaticano II adotou sistematicamente a já clássica divisão das funções de Cristo em três categorias: ensinar (como Profeta, Mestre, Luz), santificar (como Sacerdote, Mediador, Pontífice) e conduzir (como Pastor, Rei, Senhor, Cabeça). Enquanto instrumento de Cristo Profeta-Sacerdote-Pastor, a Igreja tem também três tipos de ministérios ou serviços: ensinar, santiricar e conduzir (cf. LG 21b/50; 32d/81; UR 2c/756; CD 11b/1035; 30b/1094; PO 2c/1144; 74/1162; AA 2b/1335). Bispos, Presbiteros e Leigos, cada um segundo a medida e o modo de sua participação nas três funções de Cristo, têm a tarefa de ensinar, santificar e conduzir. Santificar os homens e o mundo é, pois, uma das grandes finalidades da Igreja e de seus ministros e membros (para os Bispos, cf. LG 25; CD 15; para os Presbiteros: LG 28; PO 5; para os Leigos: LG 34; AA 6). O Vaticano II define a Liturgia como «o exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo» (SC 7c/531; PO 5a/1150) e, portanto, como o principal meio de santificação: Pela Liturgia «os homens são santificados» (SC 7b/530); a Liturgia «realiza a santificação dos homens» (SC 7b/531); os Sacramentos destinam-se à santificação dos homens (SC 59a/619). «Da Liturgia, portanto, mas da Eucaristia principalmente, como de uma fonte, se deriva a graça para nós e com a maior eficácia é obtida aquela santificação dos homens em Cristo e a glorificação de Deus, para a qual, como a seu fim, tendem todas as demais obras da Igreja» (SC 10b/537).
Em resumo: a Igreja existe para a santificação dos homens em Cristo. E esta santidade que ela deve levar também aos homens do mundo secularizado para que não se profanizem. Também hoje vale a palavra do Apóstolo: «Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação» (1 Tess 4,3). Com notável insistência o Concílio repete este solene aviso: Todos são chamados à santidade: omnes ad sanctitatemvocantur (LG 11c/31; 320/80; 39a/100; 40a/101; 40b/102; 42e/114). O capítulo V da Lumen Gentium tem este título: «De universalivocatione ad sanctitatem in Ecclesia»: a vocação de todos à santidade na Igreja.
O que o Vaticano II entende por «santidade» se poderá ver talvez melhor por esta passagem: Depois de lembrar que Cristo enviou sobre todos o Espírito Santo «para interiormente os mover (intusmoveat) a amarem a Deus com todo o coração, toda a alma, toda a mente e toda a sua força e para se amarem mutuamente como Cristo os amou», o Concílio continua: «Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e justificados no Senhor Jesus, não segundo a medida de suas obras: mas segundo Seu desígnio e Sua graça, foram feitos pelo batismo da fé ver- dadeiros filhos de Deus e participantes da natureza divina e por- tanto realmente santos (reapsesanctieffecti sunt). Devem eles, por conseguinte, com a ajuda de Deus, conservar e aperfeiçoar em sua vida a santificação que receberam (sanctificationemquamacceperunt)».
Segundo esse texto conciliar, o que nos faz reapsesancti é: o chamado do Pai; a justificação pelo Filho; a infusão do Espírito Santo e Sua moção interior (intus) a um total amor a Deus e ao próximo, «como Cristo»; a transformação em filhos de Deus; a participação na natureza divina; acentua-se ainda a total gratuidade de todo esse processo: non secundum opera sua. Na frase final o Concílio faz uma distinção entre a santificação recebida por Deus, santidade que poderíamos chamar ontológica ou objetiva e a santificação que deve ser vivida, conservada e aperfeiçoada pelo cristão, ou santidade subjetiva como resposta humana. Somos santos (santidade ontológica ou objetiva) e por isso devemos agir como santos (santidade subjetiva). Ageresequitur esse. Devemos viver ou realizar aquilo que somos, ou, segundo São Paulo, devemos «rematar a obra da santificação» (2 Cor 7,1): «o santo santifique-se mais» (Apoc 22, 11). Não vivemos uma vida virtuosa para chegarmos a ser santos (isso seria pura presunção farisaica, com uma concepção meramente moral da santidade), mas porque somos santos por isso nos esforçamos por viver uma vida virtuosa: viver «como convém a santos» (Ef 5,3), «como escolhidos de Deus, santos e amados, devemos revestir-nos de sentimentos de carinhosa compaixão, bondade, humildade, mansidão, longanimidade» (Col 3,12), produzindo os frutos do Espírito para a santificação (cf. Gál 5,22; Rom 6,22).
É evidente — e pode até parecer ridículo dizer — que tudo o que o Concilio e o Novo Testamento entendem por «santo», «santidade» e «santificação» não se obtém através do processo de secularização e dessacralização; e que, portanto, o homem simplesmente secularizado ainda está longe de ser «santo». «Só Deus é Santo e Santificador» (PO 5a/1150). Nós cristãos não somos dos que «esperam uma verdadeira e plena libertação da humanidade somente pelo esforço humano, persuadidos de que o futuro reino do homem sobre a terra haverá de satisfazer todos os desejos de seu coração» (GS 10a/230). Para nós «o Senhor [Jesus Cristo] é o fim da história humana, ponto ao qual convergem as aspirações da história e da civilização, centro da humanidade, alegria de todos os corações e plenitude de todos os seus desejos» (GS 45b/343).
4. A Presença do Pecado Também no Homem Secularizado
Não devemos iludir-nos com o otimismo da secularização. Pois o pecado, o verdadeiro pecado («levantar-se contra Deus para atingir seu fim fora de Deus»: GS 13a/239) é uma triste realidade, facilmente constatável, também num mundo secularizado. O homem secularizado não-pecador é uma fantasia inexistente. É pura utopia pensar na possibilidade de construir um mundo secularizado que pouco a pouco se transforme numa espécie de paraíso. Ainda que seja certo que as perturbações verificadas tão frequentemente na ordem social decorram em parte da própria tensão existente nas estruturas econômicas, políticas e sociais (e, portanto, como tais, possam ser corrigidas), é, no entanto, verdade também que elas têm uma origem mais profunda no próprio ser humano. Pois o homem é por nascença um ser inclinado ao mal: homo, proclivis ad malumnatus (GS 25c/277). E por isso «os desequilíbrios que atormentam o mundo moderno se vinculam com aquele desequilíbrio mais fundamental radicado no coração do homem» (GS 10a/230). O homem, também o secularizado, «é um ser dividido em si mesmo: Por esta razão toda a vida humana, individual e coletiva, apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas; e, o que é pior, o homem se descobre incapaz de debelar eficazmente por si mesmo os ataques do mal; e assim cada um se sente como que carregado de cadeias… O pecado diminuiu o próprio homem, impedindo-lhe de conseguir a plenitude» (GS 13b/240).
É a descrição que o Concílio Vaticano II nos deu do pecado original. E acrescenta: «Uma luta árdua contra o poder das trevas perpassa a história universal da humanidade. Inicia- da desde a origem do mundo, vai durar até o último dia, segundo as palavras do Senhor. Inserido nesta batalha, o homem deve lutar sempre para aderir ao bem; não consegue alcançar a unidade interior senão com grandes labutas e o auxílio da graça de Deus» (GS 37b/313).
Pertence às fundamentais convicções do Cristianismo que nem a psicologia, nem a psicanálise, nem a sociologia, nem a ciência, nem a técnica, nem a reencarnação, nem qualquer processo de secularização, por mais libertador que seja, poderá libertar-nos deste estado; ou, como ensinava em 1547 o Concílio de Trento, o homem é incapaz de justificar-se perante Deus por suas obras ou unicamente pelas forças da natureza (Dz 811); ou como em 1965 proclamava o Concílio Vaticano II: «Ninguém por si só e com as próprias forças se liberta do pecado e se eleva acima de si próprio (supra seipsumelevatur); ninguém se desprende em definitivo de sua fraqueza, solidão ou servidão; mas todos necessitam de Cristo exemplar, mestre, libertador, salvador, vivificador» (AG 8/882). Por isso «o próprio Senhor veio para libertar e confortar o homem, renovando-o interiormente; expulsou o príncipe deste mundo, que retinha o homem na escravidão do pecado» (GS 13b/240); «Cristo crucificado e ressuscitado quebrou o poder do Maligno e libertou o mundo reduzido à servidão do pecado, para transformá-lo segundo o plano de Deus e assim chegar à consumação» (GS 2b/202). Ou, num texto ainda mais cheio de doutrina: «Para estabelecer a paz ou a comunhão com Ele e a fraterna sociedade entre os homens pecadores, Deus decretou entrar na história humana de modo novo e definitivo: para isso enviou o Filho em nossa carne, a fim de por Ele livrar os homens do poder das trevas e de Satanás (cf. Col 1,13; At 10,38) e n’Ele reconciliar consigo o mundo; a Ele, por Quem também fez o mundo, constituiu herdeiro de todas as coisas, para n’Ele restaurar tudo» (AG 3a/876). E «assim como Cristo foi enviado pelo Pai, assim também Ele enviou os Após- tolos, cheios do Espírito Santo, não só para pregarem o Evangelho a toda criatura, anunciarem que o Filho de Deus, pela Sua morte e ressurreição, nos libertou do poder de Satanás e da morte e nos transferiu para o reino do Pai, mas ainda para levarem a efeito o que anunciavam: a obra da Salvação, através do Sacrifício e dos Sacramentos» (SC 6/528).
A «libertação» ou «salvação» suposta em todos estes densos textos do Vaticano II não é esta «libertação do homem» da qual atualmente nos falam certos ambientes da América Latina que desejam libertar o homem da miséria, da fome, da ignorância, da opressão, da injustiça institucionalizada, da desordem estabelecida, do subdesenvolvimento, etc.9 Não que, como cristãos, não devamos interessar-nos vivamente também por estes problemas humanos (sua solução pode ser efetivamente conseguida sem Cristo, por uma bem orientada secularização e, portanto, pode ser o resultado do esforço humano natural); mas eles não constituem o objeto direto e primário de nossa ação especificamente cristã, eclesial e santificadora; nem foi para a solução desta ordem de necessidades que o Verbo se fez carne e habitou entre nós e deixou no mundo Sua Igreja. Segundo tudo quanto lemos nos livros do Novo Testamento e na viva Tradição da Igreja, Cristo veio para libertar o homem do demônio, do pecado e da morte, para dar-lhe o Espírito Santo, a graça da adoção de filhos, a vida eterna; e para conduzi-lo ao Reino consumado do Pai. E esta espécie de libertação foi perfeitamente possível também num mundo sacral e até mesmo numa sociedade capitalista.
Não custa redescobrir nos citados textos do Vaticano II a doutrina ensinada pelo Concílio de Trento: que pelo pecado Adão perdeu (para si e seus descendentes) a santidade e a justiça em que havia sido constituído10; incorreu na ira e indignação de Deus; foi submetido à morte11, à escravidão do pecado e ao poder do demônio; e foi mudado para pior em corpo e alma12 (Dz 788); que todos os filhos de Adão nascem com a «morte da alma» (Dz 789), perderam a inocência, tornaram-se filhos da ira, servos do pecado, sujeitos ao poder do demônio13 e da morte, com as forças atenuadas e inclinadas ao mal (Dz 793); que a justificação não é somente a remissão dos pecados, mas ao mesmo tempo a santificação e renovação do homem interior pela voluntária recepção da graça e dos dons, passando assim o homem de injusto para justo, de inimigo para amigo, para então ser herdeiro da vida eterna segundo a esperança (Dz 799); que embora Cristo tenha morrido por todos, nem todos recebem o benefício de Sua morte, mas somente aqueles que livremente aceitam o Senhor, aos quais é então comunicado o merecimento de Sua paixão, mediante o batismo (Dz 795, 800) e os demais meios de santificação: a Caridade, a Palavra de Deus, a Eucaristia, os outros Sacramentos e Sacramentais, os Dons do Espírito, o Trabalho na ordem temporal, a Imitação de Cristo na oração, na humildade, na abnegação, no serviço fraterno atuante e no exercício das virtudes; sem esquecer os caminhos de salvação sobrenatural que unicamente Deus conhece para os que sem culpa própria ignoram o Evangelho. Mas sobre os meios indicados pelo Vaticano II para santificar os homens seria necessário fazer um estudo à parte e redigir artigo especial.
5. A Santificação também do Mundo
Mas não é só o homem que deve ser santificado. O Concílio fala também de uma «santificação do mundo» (LG 31b/77; AA 16c/1390).14 Há entre o homem e o mundo (o cosmo ou os seres não-humanos) uma íntima solidariedade: as coisas, ou «as realidades que constituem a ordem temporal», foram criadas a serviço do homem (in servitiumhominis: AA 7b/1356; propter hominem creavit: GS 39a/318); todas as coisas existentes na terra (omniaquae in terra sunt) são ordenadas ao homem (ad hominem) como a seu centro e fim (GS 12a/235); pelo homem (per hominem) os elementos do mundo material atingem sua plenitude (GS 14a/242); através do homem o mundo louva e glorifica a Deus (GS 14a/242), isto é, na medida em que as coisas estiverem sujeitas ao homem (GS 34a/304); e o mundo material alcança seu fim pelo (per) homem (LG 48a/128). Esta solidariedade insinua que também o pecado do homem não apenas «diminuiu o homem» (GS 13b/240), mas também «de- formou a figura deste mundo» (GS 39a/318), perturbou a his- tória humana (GS 40e/323), deixou sua marca no mundo (AG 8/882) e de alguma maneira (não sabemos como) sujeitou também o mundo «à vaidade» (Rom 8,20) e ao poder do «príncipe deste mundo» (Jo 12,31; 14,30; cf. 1 Cor 4,4). Pois Cristo «expulsou o príncipe deste mundo» (GS 13b/240) e «quebrou o poder do Maligno e libertou o mundo reduzido à servidão do pecado, para transformá-lo segundo o plano de Deus e assim chegar à consumação» (GS 2b/202). Não sabemos nem quando nem como, mas pela fé sabemos que de fato também a terra será consumada e o universo não-humano será transformado (GS 39a/318). O Concílio ensina positivamente numa Constituição Dogmática que «também o mundo todo (universusmundus), que está intimamente ligado com o homem (intime cum hominecon- iungitur) e por ele alcança o seu fim, será perfeitamente restaurado em Cristo» (perfecte in Christoinstaurabitur: LG 48a/128) e fará parte integrante do Reino de Deus consumado (LG 9b/25; 36a/91). — E” certo que tudo isso não é racional e pode ser conhecido apenas à luz da fé: «Esta interpenetração da cidade terrestre e celeste não pode ser percebida senão pela fé; bem mais, será sempre o mistério da história humana, perturbada pelo pecado até a revelação plena da claridade dos filhos de Deus» (GS 40c/232).
Quanto ao modo como santificar o mundo, o Concílio parece indicar ao menos estes três:
1. Pelos sacramentais. Como temos os sacramentos para a santificação dos homens, assim temos os sacramentais para a santificação do mundo. A morte e ressurreição de Cristo trouxeram aos homens e ao mundo a redenção e a santificação; mas os méritos do Senhor nos devem ser comunicados, aqui e agora; e isso é feito principalmente através dos sacramentos e dos sacra- mentais. Por sacramentais entende o Vaticano Il «sinais sagra- dos, pelos quais, à imitação dos sacramentos, são significados efeitos principalmente espirituais, obtidos pela impetração da Igreja» (SC 68/621). Ensina ainda o Concílio que não só os sacramentos mas também os sacramentais recebem sua eficácia do Mistério Pascal da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo (SC 61/622). Por estes sacramentais
— «são santificadas as diversas circunstâncias da vida» (SC 60/621);
— «quase todo acontecimento da vida é santificado» (SC 61/622);
— «quase não há uso honesto de coisas materiais que não possa ser dirigido à finalidade de santificar o homem e louvar a Deus» (ib.).
Só poderemos entender o sentido das bênçãos de coisas e o reto uso dos sacramentais à luz da doutrina acerca do pecado e sua repercussão também sobre o cosmo e a doutrina acerca da redenção e sua redundância também sobre o mundo. O Vaticano II estabelece este princípio: «Todas as atividades humanas, diariamente desviadas pela soberba e pelo amor desordenado de si mesmo, devem ser purificadas pela cruz e ressurreição de Cristo e encaminhadas à perfeição» (GS 37c/315). Toda a atividade humana deve ordenar-se ao serviço de Deus e dos homens. Mas o pecado, principalmente a soberba e o egoísmo, desvia o sentido e a razão de ser da atividade humana. «Recusando muitas vezes reconhecer a Deus como seu princípio, o homem destruiu a devida ordem em relação ao fim último e, ao mesmo tempo, toda a sua harmonia consigo mesmo, com os outros homens e as coisas criadas» (GS 13a/239). Assim o pecado macula a atividade humana e as próprias coisas. Por isso devem ser «purificadas pela cruz e ressurreição de Cristo». E para isso a Igreja nos oferece os sacramentais. «Em ardente expectativa este mundo criado (Atísis) aguarda a manifestação dos filhos de Deus. Pois as criaturas estão sujeitas à vaidade (mataióteti), não voluntariamente, mas por causa daquele [o homem pecador] que as sujeitou, na esperança que a própria criação seja redimida da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que a criação inteira até agora geme e sente dores de parto. E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção, a redenção do nosso corpo» (Rom 8,19-23).
Mas o Concílio reconhece que «no decorrer dos tempos se introduziram certos costumes nas cerimônias dos sacramentos e dos sacramentais, que por sua natureza e finalidade pouco correspondem ao nosso tempo, fazendo-se por isso mister adaptá-los em algumas partes às necessidades de nossa época» (SC 62/623). Por isso manda: «Os sacramentais sejam revistos, tendo-se em conta a norma básica de que a participação dos fiéis seja consciente, ativa e fácil, e atendendo-se também às necessidades dos nossos tempos. Nos rituais a serem revistos podem ser acrescentados novos sacramentais, segundo a exigência das necessidades» (SC 79/648). Esta renovação dos sacramentais apenas agora começou. Informa a revista Notitiae (n. 55, junho de 1970), publicada pela Congregação para o Culto Divino, que apenas na reunião de abril último foi apresentada uma primeira relação sobre a renovação das bênçãos. Esta relação reconhece que a atual situação de secularização traz dificuldades especiais. Quanto às bênçãos invocativas, propõe a relação que elas deveriam exprimir de algum modo a beleza nativa de cada coisa criada e o fato de que as criaturas constituem um dom, oferecido aos homens pelo Criador. Também seria oportuno que estas bênçãos se referissem ao trabalho e à laboriosidade do homem, o qual, justamente porque é feito à imagem de Deus, recebeu do Criador o domínio sobre as coisas da criação e a capacidade de transformá-las em vantagem própria. São exemplarmente indicativas as duas orações de «bênção» que acompanham a apresentação dos dons na celebração eucarística segundo o novo Ordo Missae. Adverte ainda a relação que, embora conservando o elemento invocativo contra o poder diabólico, se tenha a preocupação que a bênção não seja interpretada no contexto de uma concepção «mágica» do mundo, nem favoreça uma mentalidade supersticiosa, infelizmente ainda hoje muito difusa.15
Então sim, «remido por Cristo e tornado criatura nova no Espírito Santo, o homem pode e deve amar as próprias coisas criadas por Deus. Pois ele as recebe de Deus e as olha e respeita como que saindo de Suas mãos. Agradece ao Benfeitor os objetos criados e usa-os e frui-os na pobreza e liberdade de espírito. E’ assim introduzido na verdadeira posse do mundo, como se nada tivesse, mas possuísse tudo. “Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1 Cor 3,22-23)» (GS 37c/315).
2. Pelo sacrifício eucarístico. As coisas deste mundo e as ações humanas são «santas» ou «santificadas» na medida em que são purificadas das manchas que o pecado do homem deixou nelas; libertadas do poder do príncipe deste mundo; realiza- das em si ou secularizadas; referidas ou ordenadas ao serviço de Deus e dos homens; assumidas ou recapituladas por Cristo; e dirigidas ou orientadas para sua consumação no Reino de Deus consumado. Quando fala do modo como os leigos exercem seu apostolado de santificação, o Concílio lhes lembra uma doutrina de extrema importância para o povo de Deus da Nova Aliança: como Cristo é o Caminho para o Pai, o Mediador e o Sacerdote único entre Deus e os homens, chegamos ao Pai apenas por Cristo, com Cristo e em Cristo; e como nosso supremo e eterno Sacerdote renova sempre de novo sobre nossos altares Seu único sacrifício, temos a graça e a facilidade de unirmos ao sacrifício de Cristo e oferecer-nos ao Pai por Cristo, com Ele e n’Ele, Diz então o Vaticano Il: «Assim todas as suas [dos leigos] obras, preces e iniciativas apostólicas, vida conjugal e familiar, trabalho cotidiano, descanso do corpo e da alma, se praticados no Espírito, e mesmo os incômodos da vida pacientemente suportados, tornam-se “hóstias espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo” (1 Ped 2,5), hóstias que são piedosamente oferecidas ao Pai com a oblação do Senhor na celebração da eucaristia. Assim também os leigos, como adoradores agindo santa- mente em toda a parte, consagram a Deus o próprio mundo» (LG 34b/87). O mundo, nossas obras e iniciativas, nossa vida e trabalho, nossos recreios e incômodos, quanto temos e somos: tu- do isso será a matéria das «hóstias espirituais» de que fala São Pedro, tudo isso será como que colocado sobre o altar do Sacrifício Eucarístico e, juntamente com a oblação do Senhor, oferecido ao Pai e desta maneira santificado… «Desta forma são os homens convidados e levados a oferecerem a si próprios, seus trabalhos e todas as coisas criadas (cunctasque res creatas) junto com Ele. Assim a Eucaristia se apresenta com fonte e ápice de toda a evangelização» (PO 5b/1151) e como grande meio de santificação não só dos homens, mas também do mundo. Com razão, pois, rezamos na Oração Eucarística 1, o tradicional cânon romano: «Por meio dele [Cristo] não cessais de criar e santificar estes bens…»
3. Pela animação cristã da ordem temporal. Disto já se falou bastante em outros artigos.16 Aqui, para completar o quadro, basta lembrar que os leigos, exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus, guiados pelo espírito evangélico, «a modo de fermento, de dentro, ajudam na santificação do mundo» (LG 31b/77), «santificam e animam em Cristo o mundo» (AA 16c/1390). «Santificar» o mundo, agora, significa: orientar o mundo para Cristo (AA 2a/1334); animar e aperfeiçoar a ordem temporal com o Espírito do Evangelho (AA 2b/1335); animar e aperfeiçoar a ordem das coisas temporais dentro do espírito cristão (AA 4e/1344); penetrar do espírito evangélico as realidades temporais (AA 5/1350), etc.
* * *
São estas as considerações complementares às quais me referia no início. Elas nasceram do contacto com a realidade brasileira e latino-americana, de numerosas conferências e cursos a bispos e sacerdotes no Brasil e principalmente fora do Brasil, quando se notava uma tendência, dia a dia mais explicitada por alguns, de abstrair precisamente daquilo que me parece ser a essência do Evangelho e da vida cristã e a razão de ser da Igreja e do nosso ministério sacerdotal. Ou santificaremos em Cristo os homens e o mundo secularizado, ou submergiremos com ele na profanização e no secularismo.
[*] O presente artigo foi extraído do fascículo 119 da Revista Eclesiástica Brasileira –
Kloppenburg, B. (1970). A Santificação de um Mundo Dessacralizado. Revista Eclesiástica Brasileira, 30(119), 513–537 – https://doi.org/10.29386/reb.v30i119.4549
NOTAS
[1] E depois reproduzidos e enriquecidos no livro O Cristão Secularizado, Editora Vozes, Petrópolis 1970, com 231 pp.
[2] Cf. REB 1969, pp. 271ss; O Cristão Secularizado, Ed. Vozes, 1970, pp. 2Iss.
[3] O Concílio afirma que diante da evolução atual do mundo, ama dia são mais numerosos os que formulam perguntas primordialmente fundamentais ou as percebem com nova acuidade» (GS 10a/230).
[4] O Jornal do Brasil (Rio, 15-8-1970), por seu Departamento de Pesquisa, destaca em várias páginas «o assalto à razão» e anuncia na primeira página do Caderno B: «Um fato parece incontestável nesta época em que tudo é objeto de contestação. Vivendo em mundo modelado pela racionalidade da ciência, o homem se sente cada vez mais fascinado pelo irracional. Busca o mito, segue o maravilhoso, foge para o sonho, entrega-se ao abraço do inexplicável. Pintando, compondo, escrevendo, representando, é nas esferas oscilantes das visões e das alucinações que vai procurar inspiração. No país da tecnologia, os Estados Unidos, milhões de jovens dão as costas à Física Atômica e à Cibernética, voltando-se para o hermetismo e o orientalismo. Em Paris, a cidade dos enciclopedistas, florescem milhares de bruxos e cartomantes. E não muito longe do local onde os revolucionários de 1789 entronizaram a deusa Razão, um novo mágico, o computador, fabrica horóscopos e os vende a cinco francos por cabeça. De um extremo a outro do globo, uma grande vaga de erotismo pode ser interpretada como a vitória dos instintos sobre a conduta orientada pela reflexão e a racionalidade. Ocultismo, orientalismo, instintivismo, surrealismo, neo-romantismo, certas for- mas de escapismo social são manifestações de um mesmo fenômeno, expressões de uma mesma tendência. Para sustentá-la no campo das ideias existe uma corrente filosófica, cuja aparição, em termos de modernidade, ocorreu há 150 anos. O seu nascimento e desenvolvimento foram chamados por um pensador contemporâneo de o assalto à razão». E segue O artigo.
[5] Thomas Merton, À Igreja e o Mundo sem Deus, Editora Vozes, 1970, pp. 55-70.
[6] O Concilio fala dos que «esperam uma verdadeira e plena libertação da humanidade somente pelo esforço humano, que estão persuadidos de que o futuro reino do homem sobre a terra haverá de satisfazer todos os desejos de seu coração» (GS 10a/230); dos que «esperam a libertação do homem, principalmente a sua libertação econômica e social, e sustentam que a religião por sua natureza impede esta libertação, à medida que, estimulando a esperança do homem numa quimérica vida futura, o afastaria da construção da cidade terrestres (GS 20b/256). — Sobre esta «tentação do secularismo», cf. O Cristão Secularizado, pp. 107-134.
[7] A aprovação do mundo secular não significa rejeição pura e simples do mundo sacral. Esta observação é de certa importância, sobretudo quando queremos ajudar positivamente no processo de dessacralização da Igreja e de suas instituições e doutrinas. Não se pode negar a necessidade e até a urgência de certa dessacralização na Igreja. Este processo, entretanto, não é fácil e até extremamente delicado, pois supõe critérios de ação ainda insuficientemente estudados e, sobretudo, pouco comprovados pela experiência de uma vida autenticamente cristã num mundo secular. Seria, por exemplo, certamente ruinoso e superficial tomar como critério este princípio: Tudo o que caracteriza o mundo sacral está superado e deve desaparecer. Baseado neste princípio se poderia argumentar assim: ora, a existência de espíritos (bons e maus) e sua presença e atuação entre os homens era uma das características do mundo sacral; logo, etc. Da mesma maneira se poderia argumentar contra a oração de petição na ordem temporal, ou contra o uso dos sacramentais e, em particular, das bênçãos. Mas a argumentação seria falaciosa, viciada já na premissa maior.
[8] E aqui seria necessário relembrar tudo o que já foi dito sobre o sentido e a ambiguidade das palavras «sacro» (e seus derivados, como «sagrado», «consagração», «consagrar», «sacralizar», «ressacralizar») e «profano» (e seus derivados), cf. REB 1969, pp. 271-274 e 287s; ou 0 Cristão Secularizado, pp. 21-24 e 385; sobre a legitimidade do antropo- centrismo (cf. REB 1969, pp. 275-277; O Cristão Secularizado, pp. 25-27); e, principalmente, sobre o sentido ou o valor religioso da atividade humana na ordem temporal (cf. REB 1967, pp. 22-42; O Cristão Secularizado, pp. 185-206).
[9] Veja-se por exemplo o livrinho Aportes para la Liberación (Bogotá 1970) que reproduz as conferências pronunciadas no simpósio «Teologia de laliberación», em Bogotá, nos dias 6 e 7 de março de 1970.
[10] Também o Vaticano Il ensina que o primeiro homem «foi constituído por Deus em estado de justiça» (GS 13a/239).
[11] Também o Vaticano Il ensina que o homem, se não tivesse pecado, não teria morrido: «a morte corporal, da qual o homem seria subtraído se não tivesse pecado, será vencida um dia, quando a salvação perdida pela culpa do homem lhe for restituída por seu onipotente e misericordioso Salvador» (GS 18b/251).
[12] Também o Vaticano ll ensina que o pecado «diminuiu o homem» (GS 13b/240), vulnerou a liberdade (GS 17/249), feriu a vontade (GS 78a/466), obscureceu e enfraqueceu a inteligência (15a/244).
[13] Também o Vaticano Il conhece esta sujeição ao poder do: demônio e, já vimos vários textos (cf. GS 2b/202; AG 3a/876; SC 6/528).
[14] Também as novas Orações Eucarísticas conhecem esta santificação. Na Anáfora Ill rezamos: «Por meio de Jesus Cristo… e pela força do Espírito Santo dais vida e santidade a todas as coisas» («sanctificas universa»); na, Anáfora IV: e… enviou de vós, 6 Pai, o Espírito Santo, como primeiro dom aos vossos fiéis, para santificar todas as coisas, levando à plenitude a sua obra».
[15] O novo Missal definitivo (de 1970) já nos oferece um exemplo de um sacramental renovado no <«ordo ad faciendam et aspergendamaquambenedictam». Na bênção da água pede: <«… Fontem vivum in nobis tuae gratiae renovari et abomni malo spiritus et corporis per ipsam nos defendi concedas»; ou: <«hanc aquam quaesumus benedicas qua fidenter utimur ad nostram implorandam veniam peccatorum et adversus omnes morbos inimicique insidias tuae defensionem gratiae consequendam…» Na bênção do sal reza: «… Praesta, Domine, quaesumus, ut, ubicum que haec salis et aquae commixtio fuerit aspersa, omni impugnatione inimici de pulsa, raesentia Sanctitui Spiritus nos iugiter custodiat». Aliás neste novo missal encontramos formulários especiais de Missas para santificar o trabalho humano, para pedir a bênção de Deus sobre as sementeiras, para suplicar uma boa colheita, para implorar a chuva, para pedir bom tempo, para os enfermos, para os moribundos, para os prisioneiros, para pedir a caridade, para fomentar a concórdia, para a família, para familiares e amigos, para os que nos afligem, para suplicar a graça de uma boa morte… Sobre o sentido e o valor da oração de petição num mundo dessacralizado, cf. O Cristão Secularizado, pp. 73ss; veia também E. Schillebeeckx, Deus e o Homem, Edições Paulinas, 1969, pp. 273ss; K. Rahner, Teologia e Antropologia, Edições Paulinas, 1969, pp..237ss.
[16] Cf. <O valor religioso da atividade humana na ordem temporal», em REB 1967. pp. 22-42, principalmente na p. 37ss; O Cristão Secularizado, pp. 201ss.