Não somente alucinações, mas também ilusões permeiam toda a história da mística cristã e não se excluem nem mesmo sobre a vida dos santos de nossa estima e devoção.
 
Tal princípio é exposto na grandiosa obra especialmente preparada para organizar as etapas dos processos de canonizações, a “De Servorum Dei Beatificatione et Beatorum Canonizatione”, de autoria de Próspero Lambertini, pontífice romano de 1740 a até 1758, em quatorze densos volumes.
 
Amparado por Lancicio, Bento XIV afirma taxativamente que pessoas devotas, ao cair em êxtase, devem equivocar-se com frequência e tomar como revelação divina o que é apenas fruto de sua própria imaginação. Não só as “mais devotas”, mas as santas devidamente canonizadas – e em número bastante elevado, pois a Santa Sé há séculos tem que reter e censurar boa parte dos relatos dos santos por conta de seus enganos (cf. De Servorum, l. 3, c.53, n.17).
 
Pio XII afirma que a obra de Lambertini sintetiza gloriosamente o pensamento que a Igreja sempre teve ao longo dos séculos, e nos é sabido que, por exemplo, estivera o papa Gregório XI bastante preocupado com o assunto e lamentava em seu leito de morte por ter dado ouvidos a piedosos místicos que com suas dicas baseadas em visões influenciaram ele próprio a arrastar a Igreja para as margens de um cisma. Os místicos em questão provavelmente não seriam nada menos que Santa Brigida da Suécia, Santa Catarina de Sena e o Frei Pedro de Aragão.
 
Em um panorama geral, é notável que não exista qualquer consenso entre os santos visionários a respeito da idade da beatíssima Virgem Maria quando assunta à felicidade dos céus. Alguns afirmaram que tenha se dado quinze anos após a Paixão (Santa Brígida), outros são precisos na especulação imaginativa tomada como realidade e cravam vinte e um anos, quatro meses e dezenove dias (Maria de Ágreda), enquanto que outras – reparem, quase sempre mulheres – disputam entre treze anos (Anna Catarina Emmerich) e um ano e meio (Santa Isabel de Schoenau).
 
 
Há milhares de casos ainda mais emblemáticos:
Santa Francisca Romana teria recebido a revelação divina de que o céu era literalmente feito de cristal, e afirmava com veemência que tal reino cristalino estava situado “entre o céu das estrelas e o céu empírico, cujo azul por nós avistado é devido ao céu corpóreo onde estão fixadas as estrelas” (cf. Des Grâces d’Oraison, de pe. Augustín Poulain, capítulos 23 e 24).
 
Santa Catarina de Sena afirma ter sido Nossa Senhora mesma a lhe revelar que não havia sido imaculada em sua concepção, e o papa Bento XIV oficialmente endossa a hipótese de ocorrência da mais simples alucinação, desde que a idéia era de senso comum do ambiente social da mística. O pontífice é taxativo: “Magnis Hallucinationibus” (cf. De Servorum, l. 3, c.53, n.17).
 
 
A beata Josefa Maria de Santa Inês relata que Cristo apareceu diante dela em um dia de carnaval, e dirigindo-se ao sacrário da Igreja onde rezava, e dele ia retirando laranjas que lançava para ela, que se encontrava no côro (cf. Agustinos Amantes de la Sagrada Eucaristia, Pe. Corro del Rosario, p.212).
 
São Vicente Ferrer esteve convencido da grande proximidade do Juízo Final: “o que se afirmava nos séculos de uma maneira generalizada ou proverbial, eu o digo proprie et stricte loquendo”. Não obstante a pertinácia, afirmava-se o próprio anjo anunciado pelo Apocalipse, além de que o Anticristo já houvera nascido havia nove anos. Tudo isto ele conclui com base em suas próprias visões e na de outras revelações particulares (cf. Apariciones, pe. Carlos María Staehlin, p.324 e 325).
 
A medicina reconhece que toda pessoa sã e equilibrada pode sofrer de ilusões, alucinações e meros sonhos acordados (as ditas alucinações hipnagógicas), e especialmente mulheres e emotivos de modo geral, santos ou não-santos, como acabamos de demonstrar. As investigações que a Igreja instaura em cada caso sempre tem por ponto de partida a explicação natural para todos os fenômenos, aplicando-se o princípio da economia: que nunca se explique como sobrenatural um fato que possa ser explicado como natural.
 
Quando entre o povo se afirma que os santos não poderiam carregar doenças ou uma mente suscetível ao auto-engano, esquece-se que um sem número deles foram de fato neurastênicos, histéricos ou simplesmente desequilibrados por alguns momentos, como bem reconhece a mais ortodoxa doutrina católica (vide santos como São Benedito José Labre e Santa Gemma Galgani, reconhecidamente neuropata por Pio XII). É grande o número de ignorantes que acreditam e espalham a idéia de que as alucinações internas e externas são exclusividade de uma pessoa doente, desprovida de juízo e senso moral. Não raro, notaremos que os se ocupam de tal desinformação advogam em causa própria e também se apresentam como místicos eleitos pelos céus, detentores de carismas, e abrem perseguição ferrenha à saúde pública e à pastoral psiquiátrica, lançando mão de livros que por questões de prudência jamais deveriam ter fim em suas mãos. Fora o aspecto evidentemente doente dos obstinados, resta patente sua incapacidade perante os princípios mais elementares da psiquiatria e da neurologia, fenômeno de emburrecimento coletivo que facilmente toma proporção entre outros tantos igualmente emocionáveis, fomentando o desenvolvimento do já imenso celeiro de católicos místico-demonistas do Brasil.

3 thoughts on “Alucinações nos santos – será possível?

  1. Paulo Arthur Souza das Virgens says:

    Creio que pouquíssimos católicos pensariam em associar alucinações a vida dos Santos. Texto faz uma reflexão necessária, gostaria de saber mais a história citado do artigo sobre o papa Gregório XI.

  2. Alexandre de Oliveira says:

    Ótimo texto! O problema e que muitos ao ouvir esses casos temem formam “juízos de valor ´´ e já se bloqueiam.

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