Este é o primeiro artigo da série “As pseudopossessões demoníacas e as demonopatias”, que tem sua origem em um trabalho homônimo do renomado neuropsiquiatria francês Jean Lhermitte, publicado nas célebres edições de Groupe Lyonnais d’études médicales philosophiques et biologiques, sob o título “Médecine et merveilleux”.

Nesta obra, o clínico apologeta descreve os maiores e mais célebres casos de suposta possessão demoníaca, desfiando diante de nossos olhos uma complexa malha de fenômenos que de fato comprovam a natureza não-diabólica desses fatos, e que frequentemente escapam a um leitor menos preparado e ainda a muitos exorcistas. Através da habilidade incomum de dr. Lhermitte em tornar acessível o extremamente complicado, teremos como saldo uma ampla gama de conhecimentos em psicopatologia, fisiologia, neurologia e mesmo em parapsicologia, sem pecar em matéria de fé, posto que o parisiense representa uma das mais intransigentes escolas de teologia apologética do séc. XX, participando da maioria das edições dos Études Carmelitaines  e assim reunindo em seu lápis um alto senso crítico no ato de delimitar fé e ciência, com imprimatur e nihil obstat.

“Médecine et merveilleux”

Não será demais recomendar, como aprofundamento no tema, outros trabalhos do mesmo autor, como “Místicos y falsos místicos”, “Reflexões sobre a psicanálise”, “True or false possession?”, “Les hallucinations: clinique et physiopathologie” e “Mecanismo cerebral”.

Aproveitem sem moderação cada uma das sete partes do trabalho que traduziremos. O espírito, a ciência, a tranquilidade de nossos fiéis católicos necessitam e merecem conteúdos deste calibre como contraponto ao horror demonopático, verdadeira epidemia psicopatológica que infelizmente contamina as prateleiras, redes sociais, homilias e almas.

Tradução de Mario Umetsu.  

 

As pseudopossessões demoníacas e as demonopatias

Embora seja uma tradição comum sustentar que os casos de possessão diabólica eram mais frequentes em uma época em que a fé religiosa era mais viva do que hoje, a observação mostra que não é assim e que aqueles que se dizem possuídos pelo demônio não são raridades, mas muito pelo contrário. Devo acrescentar que tenho em vista, aqui, exclusivamente o mundo católico ocidental ao qual pertencemos e que não seria legítimo estender esta afirmação a outros povos cuja religião e costumes são diferentes.

No entanto, não há autor que não tenha apontado que o fenômeno da possessão nunca foi reservado a um tempo ou ambiente específico. É certo que a imagem da “possessão diabólica” se revela com mais frequência nas sociedades primitivas, ao passo que se adorna com outras cores entre os povos civilizados onde a ciência rasgou a máscara falaciosa da figura demoníaca; segue-se o fato de que nas sociedades muito desenvolvidas permanece muito forte a crença na influência do demônio materializado e em sua penetração no corpo de certos homens marcados pelo destino.

Mas, antes de mais nada, temos a certeza da realidade de um “espírito impuro”, um “espírito maligno”, que ronda à nossa volta em busca de suas presas e vítimas? Não há um cristão que não possa dar uma resposta afirmativa a esta pergunta. A Igreja no-lo ensina pela voz dos seus maiores outores, a começar por BOSSUET. Este grande pastor, de cuja profundidade, lucidez e extensão de julgamento nunca iremos dizer demais, estava tão assombrado pelo medo de ver o horror do demônio extinto nas almas cristãs que dedicou dois sermões a este tema. Na primeira, BOSSUET proclama que: “Assim como um vapor pestilento se esconde no meio do ar e, imperceptível aos nossos sentidos, insinua seu veneno em nossos corações, assim esse espírito maligno, por um contágio sutil e insensível, corrompe a pureza de nossas almas. Não percebemos que ele age em nós, porque segue a corrente de nossas inclinações. Ele nos empurra e nos empurra para o lado para o qual ele nos vê inclinados”.

O que o autor dos Sermões nos adverte é, portanto, a sutil e maléfica influência do espírito diabólico que não vemos, que não sentimos, justamente porque sua ação se exerce no sentido de nossas paixões e de nossas inclinações. Nesse ponto, pelo menos, Bossuet teria concordado com BAUDELAIRE, que afirmava que “a maior malícia do diabo é fazer as pessoas acreditarem que ele não existe”.

Devemos, portanto, reconhecer que certos seres permitem que a influência maléfica do demônio entre neles sem sempre estar ciente disso.

Durante muito tempo, na Igreja, o demônio foi considerado apenas como um espírito impuro, tentador, maligno, contra o qual se devia precaver por causa de sua dissimulação, sua capacidade de enganar e sua força, esse poder sobre o qual BOSSUET particularmente insiste . Se olharmos bem para a história, ao menos no Ocidente, parece que foi a partir do século XIII que se deram as manifestações diabólicas, todas juntas, mais barulhentas, mais singulares e mais difundidas. Mas, ao mesmo tempo em que sua suposta ação se tornava mais extraordinária, o próprio demônio tomava forma, materializava-se. O possuído não era mais apenas um ser animado por pensamentos ou tendências “diabólicas”, ele se acreditava penetrado em seu espírito e até em sua carne pelo demônio. Ele viu, ouviu, percebeu com todos os seus sentidos; além disso, os observadores atribuíam marcas corporais aos feitiços malignos do demônio: contusões, feridas, queimaduras, enfim, todo um conjunto de manifestações de cuja natureza orgânica não se podia duvidar.

Como se pode imaginar, diante de fenômenos tão estranhos e na maioria das vezes dramáticos, alguns espíritos críticos se preocuparam e colocaram claramente o problema de saber se, entre os chamados possuídos, não estariam escondidos os enfermos do espírito.

Embora o conhecimento das doenças mentais ainda permanecesse na infância na época de que falamos, pois a psiquiatria científica só data do início do século XIX, o bom senso de certos religiosos e o discernimento de alguns médicos já haviam incorporado à patologia as extravagâncias dos chamados possuídos pelo diabo. A este respeito, o famoso caso de Marthe BROSSIER é muito significativo. Considera como autêntica possessa do demônio pelos exorcistas e pelo próprio BERULLE, Marthe BROSSIER não resistiu ao exame clínico do experiente médico MARESCOT, delegado por HENRI IV.

Este clínico, que mostrou nesta matéria uma pré-vidência e um discernimento que merecem a mais profunda admiração, reduziu a nada as pretensões de Marthe à possessão do demônio, bem como o mito dos “estados sobrenaturais” que as demonstrações teatrais pareciam sustentar.

Atualmente, não há mais dúvidas sobre a realidade dos “falsos endemoninhados”, isto é, dos doentes mentais cuja conduta singular pode receber uma interpretação racional.

 

Observação preliminar:

Mas antes de penetrar no cerne de nosso assunto, surgem duas questões que devem ser respondidas para nos autorizar a usar o termo “falsamente possuído. Esta expressão não contém em si uma contradição: um falso possuído não é possuído de forma alguma, é apenas um doente. Seguindo esta lição, só poderíamos falar dos verdadeiramente possuídos.

Observe que essa crítica já foi aplicada a autores que usaram o termo “falsos místicos” para contrastá-los com os “verdadeiros místicos”. A isto podemos responder que o Evangelho já nos adverte contra os falsos profetas que se opõem aos autênticos; que, tanto para os pseudomísticos quanto para os pseudopossessos, o que chama a atenção e solicita as investigações é justamente que certos seres se dão as aparências enganosas do verdadeiro místico ou do verdadeiro endemoninhado. E os críticos mais severos não são os últimos a afirmar que o discernimento de estados sobrenaturais, divinos ou demoníacos, de comportamentos que encontram sua explicação no jogo de forças naturais, muitas vezes se apresenta eriçado de dificuldades.

Assim, é adequado manter a expressão “falsamente possuído” para definir nosso objeto.

A segunda questão a que somos obrigados a responder diz respeito à legitimidade da intervenção médica no discernimento de falsamente possuídos.

Como – diz-se – pode um clínico tão rico em conhecimentos psiquiátricos e médicos como se supõe, ser capaz de julgar estados cujo conteúdo está além dele e que são de responsabilidade do teólogo e do exorcista? Isto justamente pelo fato de o médico qualificado possuir luzes sobre a patologia do espírito de que o teólogo e o exorcista são desprovidos.

O que a observação das pseudopossessões diabólicas nos mostra é que esses estados correspondem exatamente a afecções mentais perfeitamente individualizadas e, portanto, identificáveis ​​com certeza pelo médico especialista. A estrutura da “neoformação psicológica” do delírio demonopático ou a imagem de um estado neuropático de temática demoníaca são as mesmas que as mais comumente observadas, mas cujo conteúdo é diferente. Tanto é assim que se pode, em ambos os casos, prever o curso da doença, estimar seu prognóstico e propor tratamento.

Portanto, não é surpreendente ver o número das chamadas “possessões demoníacas” diminuir à medida que a psiquiatria se torna mais abrangente e mais penetrante.

O que todos os estudos que focaram em nosso assunto mostraram é que é impossível incluir na mesma descrição todos os fatos da demonopatia, porque as formas em que ela se apresenta são muito diversas. Sem prejulgar o mecanismo em questão, podemos classificar os factos de demonopatia ou “pseudo-possessão” em dois grandes grupos: por um lado, os que se manifestam de forma intermitente ou por paroxismos explosivos, por outro lado, os que se escondem melhor e perseguem uma evolução tanto mais enganosa quanto pode não modificar de maneira muito aparente a conduta dos “falsamente possuídos”.

 

AS FORMAS PAROXÍSTICAS DE FALSA POSSESSÃO DEMONÍACA

O primeiro exemplo que impressionou a imaginação das multidões corresponde à doença sagrada, a doença comicial, a epilepsia. O grande ataque convulsivo assume uma aparência tão impressionante que facilmente se compreende como suas primeiras testemunhas imaginaram que o paciente só poderia estar invadido por alguma força sobrenatural – o demônio. De fato, durante esses estados cataclísmicos, o paciente perde a consciência, sua própria personalidade parece completamente perturbada, alienada, enfeitiçada, porque ele se dá a atos que parecem impossíveis em um sujeito normal realizar. A força que demonstra durante a crise parece exceder aquela que a natureza lhe concedeu.

O que também contribui para tal julgamento é que, após a crise convulsiva, o sujeito revela um estranho estado psíquico onde no crepúsculo da consciência, a mente afrouxa completamente as rédeas em divagações que por vezes se relacionam com temas religiosos. Em outros casos, se o paciente não expressa sua angústia em palavras, ela fica estampada em seu rosto de forma inequívoca. Assim, um doente observado recentemente por PATRIKIOS (de Atenas) cuja fisionomia durante o ataque refletia um estado moral profundamente doloroso, respondeu após recobrar os sentidos: “não posso dizer exatamente as cenas que acabei de vivenciar, mas foi terrível” e ao mesmo tempo, cobria o rosto com as mãos.

Acrescentaria que se o fenômeno premonitório da crise, a aura psíquica, mostra-se em casos não excepcionais impregnados de sentimentos ou representações de caráter sobrenatural, às vezes pode ser falsamente atribuído pelo paciente à invasão de um espírito demoníaco.

Na verdade, casos deste tipo são raridades e, por outro lado, as manifestações da doença comicial incluem sinais e características que dificilmente permitem um erro de julgamento.

Não era o mesmo na época de BRIQUET e CHARCOT em cujas obras ainda figura a descrição de ataques convulsivos paroxísticos denominados histero-epilépticos. Embora não devamos negar a realidade desses paroxismos em que se combinam dois estados de natureza diferentes – a histeria e a epilepsia- , podemos admitir que fatos desse tipo já não merecem mais do que uma simples menção.

Como sabemos, uma das características mais distintivas da epilepsia consiste na dissolução da autoconsciência durante os paroxismos. No entanto, hoje não há mais dúvida de que, ao lado dos ataques amnésicos ou convulsões, existem ataques psicomotores ou puramente psíquicos que não são acompanhados pela abolição da consciência ou da memória. O paciente assiste como verdadeiro espectador a fenômenos estranhos, mas não deixa de considerá-los patológicos.

Seremos desculpados por não nos determos na sua descrição, que fica a cargo do neurologista.

Se numa época em que reinava o animismo, “o maior poder que se deu aos homens é dar às coisas uma alma que não têm”, dizia NAPOLEÃO, não é de estranhar que os convulsionnaires comitiaux fossem tomados por “possuídos”: as brutais transformação de seu comportamento, sua inconsciência absoluta parecia a evidência menos questionável disso, mas depois que o mal comicial foi claramente identificado, foi uma outra variedade de convulsionários que chamou a atenção de médicos e exorcistas. 

Enquanto o ataque epiléptico permanece inteiramente individual, existem outros ataques demonopáticos que são evidentes por sua irradiação e sua extensão para aqueles que os cercam; a tal ponto que a história preservou a memória de numerosas epidemias convulsivas que se multiplicaram particularmente durante os séculos XV, XVI e XVII.

Aqui, a transformação externa da personalidade física e moral confere ao paciente uma semelhança muito maior com o que se pode imaginar de uma possessão que seria autêntica. De fato, não só o corpo do infeliz é afetado por convulsões, contraturas de força extraordinária e assume atitudes lascivas, grotescas e teatrais, como também o sujeito se entrega a grosserias, obscenidades, injúrias abusivas, blasfemas, gritando que é o demônio ou os demônios que o possuem e agem nele.

Ao contrário do paroxismo epiléptico cuja duração é breve e termina em um período de aniquilação ou sono, os ataques demonopáticos que temos em vista podem continuar, às vezes, por períodos muito longos e até horas inteiras. Isso permitiu definir, com base em fatos dessa natureza, uma “loucura histérica demonopática”.

Sem dúvida, o termo “loucura”, que já não tem muito significado em saúde mental, parece questionável, mas o que não é – porque os exemplos foram e continuam a ser muito numerosos – é a realidade de um estado mental muito especial em cuja trama estão inscritas as crises ou ataques paroxísticos caracterizados por uma aparente transformação da personalidade, que se manifesta por uma grande desordem de atitudes, gestos e comportamentos, aliada ao sentimento de possessão pelo espírito impuro: o Maligno, o Diabo.

(Acompanhem a continuação na parte II)

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