O ano de 2025 se aproxima, afundado em incertezas escatológico-financeiras: há de se instalar o comunismo? Estamos hoje às vésperas da concretização daquelas revelações privadas de Cimbres? A Salvação se dará pelo que eu conheço ou pelo que eu pratico? Será que já conheço tudo o que posso? E se não conheço, como é que poderia praticar o mínimo necessário pela minha conversão e a do mundo?

E não paramos por aí. Certamente quase todo mundo já se perguntou: qual padre pode realmente  me ensinar? Qual padre presta? Posso acaso confiar em não-católicos?

Vale tudo para enfrentar o demônio, de óleos essenciais a imagens de S. Miguel Arcanjo cheias de regras e discussões sobre para que lado olha o diabo sob seu pé. Tantos outros discutem a profundidade de uma lesão do tecido tegumentar que um soco do capeta pode causar, muito embora o Catecismo Romano (par.395) deixe claro que o demônio não pode causar males físicos… 

Qual a melhor escola, qual o melhor método? Se o Maligno surrava Pe. Pio e se Santa Gemma padecia as dores da cruz sendo tão boa, o que é que o futuro guarda pra mim, má católica em vias de melhora? E se eu me tornar santa, poderei suportar as investidas de Lúcifer?

Isto foi só um extrato do que um católico médio – um pouco mais culto que o católico de paróquia comum e um pouco menos versado que o padre Paulo Ricardo – põe-se a pensar nestes tempos. Tudo é ruim, tudo assusta; o demônio, mais implacável do que nunca, não pode permitir que a grande sociedade perca suas escamas dos olhos e retorne de pronto para Deus em meio a tantas tragédias morais e disparates sociais.

O que esse católico não considera é que o mero exercício dessas preocupações em forma de pergunta gera uma sobrecarga nervosa que compromete estruturas cerebrais e impedem o próprio funcionamento dos raciocínios, que viciados em aportar em perguntas para as quais não há resposta (por mais idiotas que sejam) podem se generalizar em ansiedades que se espalharão para territórios que em princípio nada tinham com religião.

É próprio de nossa função encefálica privilegiar as emoções que mais frequentemente nutrimos, e o sistema nervoso é capaz de se remoldar fisicamente mesmo para melhor produzir as emoções preocupadas que você aprendeu a provocar ouvindo profecias apocalípticas de um baiano, de um padre anônimo, de uma freira irrastreável ou mesmo de um influencer que “provou” através de stories instagrâmicos que encontrou o elixir da Graça. 

Como todo estado de tensão exige um novo estado de repouso, a compra de cursos de auto-Salvação neste mundo infeliz e perigoso são gestos obrigatórios e viciantes. E os marqueteiros identificaram no seio católico um potencial glorioso de engordar seus  porquinhos de louça no melhor estilo Polishop.

Em princípio reservados e pouco falantes, com o devido reforçamento e um banho de marketing os influencers que davam dicas pontuais de educação doméstica e suplementação conservadora aparecem anos depois esbravejando palavrões e afirmando categoricamente sua superioridade espiritual sobre toda a audiência, atestando taxativamente que são preferidos de Deus. E pasmem, a maioria dos leitores acha normal ou finge mesmo que não entendeu.

Bravatas sobre si mesmos e golpes de insanidade ao vivo são atitudes ensaiadas que os marqueteiros encomendam para que o público sofra do reforço intermitente – uma espécie de condicionamento comportamental muito aplicado em jogos de azar que faz os telespectadores criarem o vício de consumir o conteúdo, pouco importando que hoje lhes xinguem, amanhã postem uma novena e depois terminem por lhes chamar de vagabundos novamente. A maior parte de relacionamentos amorosos que se escoram em esquemas de intermitência mesclando momentos ternos e gloriosos com rompantes de agressões generalizadas podem durar toda uma vida: têm altas taxas de durabilidade e baixo índice de dissolução. E o mais interessante é que o cônjuge abusado é incapaz de desconfiar de sua própria situação e passa décadas esperando que a outra parte resolva seu “probleminha”, ainda que já tenha perdido os dentes na pancada.

Como policial civil atesto que as mulheres que denunciam seus maridos e denotam histórico de reforçamento intermitente em brevíssimo tempo retornam ao distrito para retirar suas queixas. O mesmo ocorrerá com qualquer fã de influencer que se arrependa de comprar à vista um curso de doze mil reais e não consiga de modo algum receber seu estorno.

Dá-nos certeza científica a obra “Modificação de comportamento – o que é e como fazer”, de Martin e Pear, estabelecendo que o reforçamento intermitente têm várias vantagens  sobre o reforçamento “previsível”, porque:

  • O reforçador permanece eficaz por mais tempo, porque a saciação ocorre mais lentamente;
  • Comportamento reforçado intermitentemente tende a levar mais tempo para ser extinto;
  • Os indivíduos operam de maneira mais consistente sob certos esquemas intermitentes;
  • O comportamento reforçado intermitentemente tem maior probabilidade de persistir depois de ser transferido para reforçadores do ambiente natural.

Criar problemas que jamais existiram para vender a única solução possível é um recurso que jamais deixou de mostrar seu poder ao longo de toda a história humana da comunicação. A aplicação dessa estratégia é potencializada quando o público é convencido de que possui um grande inimigo em comum e que só bem unido poderá vencê-lo. O resultado desse delírio coletivo é o comportamento imitativo que, entre católicos, fez esgotar nos brechós os paletós de gosto duvidoso e as saias rodadas.

Onde está oficialmente dito que charutos são sacramentais? Onde está estabelecido por nossa fé que as vestes devem ser precisamente x ou y e copiar o influencer em cada loucura nova que seu marqueteiro lhe sugerir?

Quem em sã consciência pode preferir contratar um profissional somente por ser católico? Acaso um nutricionista católico (sim, na rede já há “nutricionista católico”) deve oferecer um trabalho diferenciado só por frequentar a missa?
O mesmo se dirá do absurdo do “terapeuta católico” que ganha o direito exclusivo de tratar pacientes ao ensinar que apenas uma pessoa de vida reta, ordenada e virtuosa pode manejar um transtorno psiquiátrico. Já imaginaram que hall de santos vivos são esses terapeutas, já tão certos de sua Salvação? Uma de suas mais notáveis virtudes é a de vender cursos de pós-graduação que custam mais de vinte e dois mil reais e ninguém entende muito bem o que visam ensinar.

 Já recebo em clínica um sem número de pessoas aflitas, de feição esgotada pela carga de santidade exigida pelos vendedores de cursos e padres afeitos a eles. Suportam se submeter a regras que em momento algum trouxeram felicidade e sequer foram instituídos por Roma, nem mesmo a pré-conciliar. Caracterizam fiéis de uma espécie de religião paralela cujo papa interino é sempre o blogueiro mais frequente nos stories. Nesta toada, muitas vezes infernizam  os próprios filhos ao tentar salvá-los das escolas comuns entregando-os a terríveis colégios católicos experimentais, também viciados em capeta e desprovidos de ordem e método, cuja suprema distinção é reunir católicos, não importando de quais caráteres. “É católico? Tô dentro!”.

Cumpre salientar que entre esta tormenta comercial ainda devem existir pessoas que fazem da internet o seu meio seguro de espalhar conhecimento a preços justos. A diferença entre eles e os marketólicos estará na clareza e objetividade do método, na possibilidade de verificação de sua eficácia e no interesse que dispensam aos alunos.

Onde houver uma horda de fanáticos e mais de horas de auto-promoção ao vendedor em forma de culto, ali estará o perigo, não importando quantas vezes esse cristão já foi batizado… 

3 thoughts on ““COMPRE TUDO” – o novo catolicismo herbalife

  1. janaina foster says:

    Incrível! Excelente artigo!
    É exatamente isso, eles se apregoam de Santidade, de que somente eles podem tratar distúrbios psicológicos etc .
    Não pode esmalte vermelho, tem que tomar banho ,roupas sempre passada etc..mas que elitismo é esse ? Então um mendigo não pode ir para o Céu? E ninguém vê esses absurdos infundados…

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