Exorcismos, curas, êxtases, revelações, visões – fortes emoções permeiam a nossa vida diária quando o assunto é a mística. E nenhum religioso sério e honesto, nenhum dito misticozinho praticante de alguma mandiga pueril e incipiente se queixará de que sua prática não está envolta em mistério de quando em vez. É uma evidência: onde há aglomeração de pessoas, sincronia de gestos, música e dança, há dissociação cognitiva em algum grau.

A verdade nua e crua que leva ao desespero os apologetas é esta: fenômenos estranhos acontecem em todas as práticas religiosas, objetiva ou subjetivamente, e por isso mesmo não podem caracterizar o traço de revelação divina no ambiente em que ocorrem. E a ameaça para a catequese e para a saúde mental está na falta de preparo dos especialistas para distinguir o natural do milagre e do diabólico.

Se o assunto é possessão, há milênios os homens de todas as culturas expulsam espíritos de demônios, animais, plantas e mais recentemente até de personagens de animes japoneses, onde o possuído verdadeiramente dissolvia seu traços de personalidade em função dos trejeitos do desenho animado, obrigando o “exorcista” da ocasião a aplicar os rituais próprios da trama para que deixasse o corpo do pobre rapaz. Porém, se o assunto é “oração em línguas”, podemos visitar um retiro da Renovação Carismática Católica do mesmo modo que um momento de unção da Congregação Cristã no Brasil ou da igreja Sinos de Belém, sem encontrar qualquer diferença substancial nos sons emitidos e no modo de alcançar tal êxtase, sem excluir que nos terreiros do dito “baixo espiritismo” de umbanda o fenômeno é absolutamente idêntico.

A quem desejar tentar a cura através de uma cirurgia espiritual mediúnica, bem provavelmente não a conseguirá se seu problema consistir em uma lesão física onde não seja possível qualquer intervenção emocional (toda a literatura universal conhece a cura de paralisias, mutismo, cegueira funcional, disfunções hormonais, digestivos e até mesmo problemas de pele… mas nunca se registrou a cura de uma cárie dentária), mas na fila da “avaliação espiritual” encontrará um sem número de pessoas relatando o sucesso das cirurgias suas e de amigos e conhecidos – verdadeiramente experimentadas, mas jamais constatada por qualquer laudo clínico. E a conclusão é contundente: não sai no exame porque é espiritual, e só com técnicas do outro mundo pode ser tratada. Não precisamos nem insistir no espiritismo curandeiro, pois há encontros católicos que se baseiam nos mesmos princípios e práticas em momentos de “cura” que não são acompanhados por qualquer especialista em saúde e somente um “intercessor” é a autoridade para declarar se a causa de sua dor é orgânica, astral ou espiritual. O curandeirismo é uma cultura e o ponto de maior interesse do ser humano que sai à busca do contato com o sagrado [1].

A verdade é que até uma criança que aprenda rudimentos de hipnose poderá cessar dores e promover “milagres” dessa natureza, inclusive se divertir criando dores sob comandos e transferindo à da cabeça para as mãos, e assim para os pés e vice-versa, fazendo a mesma cessar cantando a Ragatanga, evocando Posseidon ou simplesmente batendo palmas.

A chamada hipnose não-verbal consiste em um outro tipo de hiperestimulação nervosa e explicará clinicamente os estados de transe, possessão e delírio místico. Qual não é o local onde homens cantantes que reúnem suas vozes em uníssono para entoar uma melodia vigorosa e rítmica não terão sua configuração fisiológica alterada? Com a sensibilidade à flor da pele, basta um único toque, um estímulo mínimo para que abdiquem automaticamente de receber qualquer estímulo externo e passam a “repousar” no chão, insensíveis ao fogo, onde apresentam desde sinais histero-epilépticos que rememoram os encontros de Mesmer, o célebre médico da Suábia, quanto o mais absoluto descanso, devido à uma descarga nervosa diretamente deflagrada por uma ação do sistema nervoso parassimpático [2]. O organismo se defende da gritaria e se desliga, tal como a chave de geral de luz elétrica para evitar o curto-circuito [3].

 

No seio de nossa Igreja Católica também há as duas coisas: o verdadeiro milagre, clara ação de Deus no mundo e acomodável a todos os níveis de inteligência (e ele é muitíssimo raro, por isso mesmo um milagre), e todos os outros fenômenos que ocorrem em todos os outros lugares a partir do mesmo tipo de estimulação. Pode parecer incrível, mas uma vassoura de piaçava funciona igual no chão de um hotel, lanchonete ou da Igreja! Do mesmo modo, funcionam os nossos nervos, feixes e gânglios quando expostos à exaustão em qualquer lugar que estejamos, mesmo em uma missa, adoração ou simplesmente rezando.

Qual não é, por exemplo, a confusão de um carismático quando ele acredita estar na religião verdadeira simplesmente por presenciar “o fogo descendo” em todo encontro que frequenta e depois se depara com as mesmíssimas coisas ocorrendo na igrejola improvisada e porta-de-loja que se inaugurou há dois dias do outro lado da rua?

É necessário muita prudência e cautela para que nossa boa vontade de acolher o sagrado não se torne uma violenta indiferença religiosa ou um creio-em-qualquer-coisa que me faça bem. A vulgarização espiritual tem seu triste destino na apostasia tácita ou na demonomania delirante, onde para se manter católico e não surtar ante tantas coisas [nada] sobrenaturais o sujeito reafirma sua fé na eucaristia e demoniza todo o resto que desgosta ou não entende, desde o papa (quando a Igreja não reconhece os dons incríveis de profecia do rapaz ou da sua comunidade) até os repousos e línguas dos protestantes, que seriam causados pelos demônios, cujas insídias incessantes destroem a vida de todos os seres humanos da Terra. Afinal, os felizes são felizes porque o demônio os mantém na ilusão da felicidade, os tristes são tristes por causa do demônio, os justos são humilhados por serem justos e no final das contas a vida terrena se torna um trabalho árduo, hipervigilante e insuportável. Comemorações, explosões de alegria e bons momentos se tornam coisas do passado, quando na primavera das emoções a pessoa ainda não havia ensandecido por conta de gritarias e versículos bíblicos mal interpretados.

Em outro artigo, expusemos o quanto os exorcistas da atualidade se mostram ingênuos, crédulos e ignorantes em ciência, desobedientes à hierarquia e muito responsáveis pela estimulação nervosa que os fiéis provocam em si mesmos, seja lidando com o eventos comuníssimos como a relação com um pai espírita, o presente enfeitiçado de um ex-namorado ou um despacho na porta de casa, seja nas missas ou via YouTube, onde a histeria ocorre em home office.

 

Em teologia não podemos argumentar que os demônios estejam sempre de prontidão para causar com tamanha regularidade fenômenos tão simples [4,5]. Não podem os infernais serem usados como a melhor explicação para simples eventos que o leigo católico presencia mas se impressiona por mera ignorância. Valeria aprendermos um pouco mais com D. Boaventura Kloppenburg:

“Toda intervenção preternatural é sempre contra o curso ordinário e comum da natureza. Nem o desejo ou o capricho do homem, nem a gana ou o ódio de satanás podem perturbar a ordem e as leis estabelecidas e mantidas pelo Criador. O homem não dispõe de meios naturais para conseguir efeitos não naturais. Ou, em outras palavras: O homem não tem a faculdade ou a possibilidade de provocar por sua própria iniciativa e de modo eficiente uma atuação direta e perceptível do demônio ou de qualquer outro espírito do além; por isso a magia como tal, a necromancia, o espiritismo e o feitiço são impossíveis e ineficazes.” [6]

 

[1] Quevedo, Oscar G. – O poder da mente na cura e na doença; Loyola; 7ª edição, 1979

[2] Sargant, William – A possessão da mente; Imago, 1975

[3] Pavlov, Ivan P. – Conditioned Reflexes and Psychiatry – Lectures on Conditioned Reflexes; Cullen Press, 2011

[4] Araújo, Dom Manuel do Monte Rodrigues – Compêndio de teologia moral; Typ.Americana de I. P. da Costa

[5] Prümmer O. P, Dominicus – Manuale Theologiae Moralis Secundum Principia S. Thomae Aquinatis; Herder, 1961

[6] Kloppenburg, Dom Boaventura – A umbanda no Brasil; Editora Vozes Ltda., 1961

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