O famoso bispo brasileiro, então frei Boaventura, nomeado chefe da campanha antiespírita brasileira e perito vaticano para questões metapsíquicas, apresenta para a parapsicologia internacional universitária o modo de organização dos espíritas de nosso país em seu inútil intento de realizar feitiços através da evocação de maus espíritos. Como parapsicólogo, reconhece em alguns relatos a frequência de fenômenos estranhos que a ciência haveria de estudar com esmero, enquanto discute a possibilidade mesma de demônios interferirem nos ritos enquanto os “exus” são invocados na magia negra; como bispo e teólogo, alerta que séculos de especulações demonológicas imbuíram a figura demoníaca de um poder desproporcional às suas capacidades e a seu próprio e real poder de ação, desde que nem as Escrituras jamais afirmam que seja Satanás o motivo da proibição da magia; afinal, ele não pode agir por provocação, retribuir oferendas ou “encomendas” maléficas de um homem contra outro.

 

Título original: “As dimensões da bruxaria evocativa sob uma perspectiva teológica” (International Journal of Parapsychology, Vol. VIII, No. 2, 1966)

Tradução: Mario Umetsu

Por muitos anos tenho me absorvido com o problema da magia no Brasil, e posso testemunhar que sua prática é excepcionalmente difundida hoje em praticamente toda a América do Sul – criando sérios problemas para sociólogos, psicólogos, médicos, pastores e teólogos. Infelizmente, ainda não existe um estudo sistemático e minucioso da magia brasileira em todos os seus aspectos, e alguns problemas foram raramente investigados. Pessoalmente, é claro, o assunto me interessa do ponto de vista religioso e pastoral, e é de uma visão estritamente teológica que ofereço esta pequena contribuição.

Definir e demarcar o campo da magia não é fácil. Houve um tempo em que a magia era identificada com a religião, ambas intimamente ligadas entre si, e não se pode contestar que existe uma certa afinidade entre as duas. Mas as diferenças são essenciais: os propósitos são diferentes; o material é diferente; a mentalidade envolvida é diferente em cada caso. Magia não é religião, nem sequer se origina da religião. É antes uma imitação de religião que envolve seus seguidores em teias de fatalismo e fanatismo. Religião é conhecimento, amor e serviço ao Ser Supremo. A magia obnubila esse conhecimento. Ela impersonaliza o Ser Supremo e tenta dominá-lo através de fórmulas, ritos, espíritos malignos, invocação cabalística, gestos misteriosos e palavras especiais.

O homem religioso ama; o discípulo da magia teme. O homem religioso aspira à adoração; o discípulo da magia espera expulsar os maus espíritos. O homem religioso sente-se livre e confiante nas mãos da Providência; o discípulo da magia está desesperadamente acorrentado às inevitáveis ​​forças do fatalismo. O homem religioso ora pela graça de se sentir cada vez mais afastado das coisas terrenas; o discípulo da magia ora apenas pela felicidade nascida do ganho material, do amor terreno e da saúde corporal. O homem religioso está preocupado com sua alma; o discípulo da magia conhece apenas seu corpo. O homem religioso pensa no céu; o discípulo da magia agarra-se ao mundo somente. O homem religioso coloca sua confiança em Deus; o discípulo da magia só tem fé em encantos e fórmulas externas. E o homem religioso se esforça para rezar com o coração, enquanto o discípulo da magia reza apenas com os lábios. Aquele dirige sua vida para o significativo, superior e além; o outro é dirigido inteiramente para o superficial, o inferior, o aqui e agora.

 

Mas aqui usarei a palavra “magia” no sentido estrito do maleficium dos antigos, ou, mais precisamente, “bruxaria” ou feitiçaria, que é a prática de “causar dano a outrem”. Geralmente tais práticas devem ser conduzidas pelos próprios feiticeiros; e isso, é claro, os leva a sustentar segredos profissionais que eles não podem revelar se desejam manter seus poderes especiais. Cada ramo oculto, naturalmente, tem seus próprios métodos específicos. Eu tenho em minha coleção uma variedade de fórmulas – essas que podem destruir a amizade, frustrar os malfeitores, prejudicar o bem-estar físico ou material, destruir a felicidade, estragar as colheitas, determinar quem se casará com quem, e assim por diante.

Na triste época da bruxaria européia – especialmente dos séculos XIV a XVIII – existiam práticas mágicas conhecidas. E hoje no Brasil (como provavelmente também em outros países) volumes inteiros são publicados contendo fórmulas mágicas. Além disso, existe em meu país um movimento organizado chamado “Umbanda” (palavra de origem africana, de um culto aos bantos) – uma mistura exótica de práticas fetichistas e ritos católicos, de deuses africanos e santos católicos, doutrina espírita e ensinamento cristão. Os líderes desse movimento pregam abertamente a distinção entre “Umbanda” e “magia” – distinguindo, no entanto, entre “magia branca” (fazer o bem por magia) e “magia negra” (fazer o mal por magia), a última das quais é chamada “Quimbanda.”

Há literalmente milhares de práticas mágicas (entre as quais várias danças: as famosas “macumbas” do Rio de Janeiro”, “candomblés” da Bahia, “xangôs” do Recife, “catimbós” do nordeste, “pajelança” do norte, “Batuques” do sul); e os locais designados terreiros nos quais os ritos se realizam e atraem pessoas de todas as cores e classes sociais. O número de indivíduos que acreditam nessas práticas está crescendo, com a sempre presente questão de saber se uma determinada dança (“macumba”) ou um ato de feitiçaria (despacho) demonstrará o poder que se alega ter. Tenho cartas em meus arquivos de pessoas que atribuem seus problemas à magia dos terreiros; e certos casos são de fato estranhos. Eles devem ser cuidadosamente verificados, no entanto, por critério de autenticidade, acredito que valeria a pena conduzir a mais exata e extensa investigação, na tentativa de chegar à causa em tais casos. Meu sentimento é de que eles envolvem especificamente questões parapsicológicas de grande importância, tanto humanas quanto científicas; mas a investigação deve ser feita por um comitê de especialistas que compreenda os métodos rigorosos da parapsicologia, especialmente no exame dos próprios fenômenos.

De todas as práticas mágicas no Brasil, eu desejo expor apenas sobre a maldição evocativa dos espíritos malignos, que é a prática mais predominante, a mais temida, e que também toca o reino da teologia. Esses “maus espíritos”, chamados nos terreiros da Umbanda, são conhecidos como exus (pronunciados eshus – termo também de origem africana). Neste tipo de magia negra, os exus são numerosos e possuem nomes extravagantes: “Exu Tranca-Rua”, “Exu Quebra-Galho”, “Exu Sete-Facadas”, “Exu Tranca Tudo”. , O “Exu Cheiroso”, o “Exu da Capa Preta”, o “Exu-Morcego”, etc. E cada exu tem ao seu serviço um número de oficiais subordinados. Eles dividiram o mundo entre si e eles mesmos são os senhores, exercendo uma liberdade que não conhece restrições. Alguns exus comandam os rios; outros as selvas. Há exus que governam as ruas e aqueles que são encontrados nas montanhas. Alguns patrulham os cemitérios, enquanto outros guardam as portas das casas. Vários exus (como o “Exu Tranca-Tudo” e o “Exu Tranca-Ruas”) podem fazer quase qualquer coisa. Outros se especializam: alguns possuem o poder de infligir doenças; alguns são a causa de desastres como assassinatos, seduções ou divórcios. E eles têm seus “pratos” favoritos – de porco, cabra ou frango preto a charutos, uísque, pipoca, pimenta, dinheiro e velas. Normalmente eles desejam várias iguarias de uma só vez. E tudo deve ser preparado em concordância com um ritual mágico bem ordenado e complicado, acompanhado de pontos riscados, traçados com uma pemba, e especialmente cantados. Quando as preparações forem concluídas, os presentes sacrificiais são levados para lugares específicos, de acordo com a intenção e qualificações do exu em particular. Os rituais podem acontecer na margem de um rio, em um cemitério ou na entrada de uma casa pertencente a alguém que favorece ou se opõe à pessoa que realiza o “trabalho” em mãos; mas a maioria dessas cerimônias é realizada em cruzamentos, campos abertos, no topo das colinas ou em pedreiras. Esses atos de feitiçaria são os temidos despachos.

 

“Kloppenburg e irmão Vitrício (marista), dois vultos da hipnose brasileira em prol do apostolado católico”.

 

 

A eficácia do feitiço

Tal é, de uma forma muito abreviada, a essência da magia negra evocativa. E agora o problema de sua eficácia surge. Devemos levar alguma parte a sério? Ou devemos desconsiderar tudo isso como o produto fantástico da superstição? Embora não acreditemos na existência de exus, não poderíamos identificá-los, pelo menos em certa medida, com os “maus espíritos” encontrados na Bíblia? Pois o nome – seja “exu”, “demônio”, “diabo”, ou “Satanás” – não tem importância.

De acordo com Cristo, Satanás é o “príncipe desta cidade do mundo” (João 12:31), o “pai da mentira” (João 8:44), um “assassino desde o princípio” (João 8:44), o “inimigo de Deus” (Mateus 13:39), “homem valente” (Mateus 12:29), o “espírito impuro” (Marcos 3:30). E Jesus fala do diabo e de seus anjos (Mt. 25.41), mencionando expressamente a Satanás como “dividido contra si mesmo” (Mateus 12:26). O Apocalipse de João, também, refere-se ao “dragão” e “seus anjos” (Apoc. 12: 7), e São Paulo lembra os efésios, “A nossa luta é. . . contra os governantes do mundo desta escuridão, contra as forças espirituais da iniquidade, nos lugares celestiais (Efésios 6:12). O mesmo apóstolo nos conta outra vez sobre o “príncipe do espírito” (Efésios 2: 2), que é nomeado por ele “o deus deste mundo”  (2 Coríntios 4:4). E todos os pecadores são considerados servos ou filhos de Satanás e súditos de seu reino (João 8:44; Atos 13:10). São João declara: “Quem comete pecado pertence ao diabo” (I João 3: 8). Bem conhecido também é o grave aviso de São Pedro: estejais sóbrios, fiquem atentos. Para o seu adversário, o diabo, como um leão que ruge e sai em busca de alguém para devorar. Resista a ele, firme na fé… (I Pedro 5:8-9).

Certamente este não é o momento nem o lugar para expandir uma teologia do diabo. Compreendo bem as dificuldades da mente moderna confrontada com a demonologia cristã. Mas é necessário lembrar que nem todas as fantasias que vinte séculos de vida cristã acrescentaram à figura bíblica do diabo pertencem ao depósito de nossa fé, nem mesmo da fé católica, que neste ponto é talvez a mais explícito. As fantasias de artistas, poetas, romancistas, pessoas comuns e até pregadores iam muito além dos ensinos solenes dos concílios ecumênicos ou dos pronunciamentos oficiais papais. Como cristãos, somos obrigados a aceitar a existência do diabo e até mesmo de suas possíveis atividades entre os homens, masou. sempre um demônio que permanece totalmente dependente de Deus, que não nos permite sermos tentados além de nossas forças (1 Co 10:13). A aceitação dessa doutrina cristã não necessariamente traz consigo a aceitação de possíveis ações mágicas realizadas o auxílio do diabo. No entanto, a ação mágica pressupõe a possibilidade de uma intervenção diabólica provocada pelo homem, seja um mago ou um feiticeiro.

 

 

No entanto, embora como cristão admito a possível intervenção espontânea do diabo (aqui novamente apenas com expressa permissão divina), e não me vejo obrigado a admitir o fato de intervenções diabólicas provocadas pelo homem. Não conheço nenhuma passagem bíblica ou qualquer ensinamento solene do Magistério da Igreja que me obrigue a admitir a possibilidade de intervenção diabólica provocada pelo homem. Recordo também que a Bíblia proíbe a prática da magia. No universo do Antigo Testamento, a magia era parte integrante da vida diária. A religião dos sumérios, dos babilônios e dos assírios era essencialmente mágica. No antigo Egito o mago trabalhava de mãos dadas com a religião. Fetiches, encantos, fórmulas e rituais mágicos serviram para evitar obstáculos e legar os bens e satisfações do corpo, do coração e do espírito. Mas, repetidamente, magia ou qualquer outra forma de prática oculta ou conjuração é severamente condenada nas Sagradas Escrituras. Os profetas atacaram e ridicularizaram a magia, especialmente entre os egípcios e os babilônios (Is 47:12-15; Dan. 1:20; 2: 10,12. Sb. [Livro da Sabedoria, O.T. Apocalipse 17:7). No entanto, o diabo nunca é mencionado como o motivo alegado para tal atitude rigidamente proibitiva. Permitam-me insistir: a Bíblia não condena a magia porque suspeita de ação diabólica. Os motivos indicados na Bíblia são outros: “. . . porque vocês serão contaminados por eles [os magos]. “Eu, o Senhor, sou o teu Deus” (Levítico 19:31); porque o Senhor detesta tais práticas (Deuteronômio 18:12); porque a magia separa o homem de Deus (Dt 13: 2-6); porque se afasta da Lei e do Pacto (Isaías 2: 6); porque a magia “perturba os caminhos retos do Senhor” (Atos 13:10); porque a magia pertence às “obras da carne” (Gl 5:19). Estes são os motivos indicados nos livros da Bíblia; não o diabo, nem algum pacto com o diabo, nem a invocação de Satanás. Confiança no Senhor é o tema do Antigo Testamento. Magia, no contexto bíblico, é uma ameaça à soberana independência e transcendência de Deus e de seus direitos exclusivos de criação, revelação, milagre e santificação do homem. A magia tende a rebaixar Deus a um nível de criatura e abre a porta ao politeísmo. E na medida em que a magia é uma humilhação da soberania divina, também é uma degradação da dignidade racional do homem, uma deformidade do autêntico sentimento religioso [grifos e negritos sempre do tradutor].

 

Insisto nesse ponto porque sei que no círculo da teologia católica e protestante existe uma tendência comum, até hoje, de ver uma conexão íntima entre a magia e certas ações diabólicas. Eu vejo tal tendência, por exemplo, em Tanquerey  (Synopsis Theologiae Dogmaticae), que cita a seguinte definição de magia: “…a faculdade de produzir com certeza e regularidade efeitos estranhos, com certos conjuntos de sinais e a ajuda do diabo” (Vol. II, p. 507). Essa definição, se quisermos levar a sério, supõe que o mago é definitivamente capaz de produzir efeitos com a ajuda de Satanás. Este conceito, no entanto, não vem da Bíblia, nem de nossos pais e nem do ensino eclesiástico. Vem dos dias da feitiçaria européia, do século XIV ao XVIII, quando católicos e protestantes queimavam milhares de bruxas e feiticeiros, especialmente na Alemanha e na Inglaterra. A teoria em voga era a de um pacto, implícito ou explícito, entre o feiticeiro e o diabo, que permitia aos feiticeiros produzir seus efeitos estranhos. Naqueles dias, volumes, milhares e milhares de páginas em comprimento, foram escritos por teólogos católicos e protestantes – os homens mais sábios da época – para demonstrar a realidade da feitiçaria satânica, das bruxas voando pela noite em cabos de vassoura, e de banquetes sinistros no sábado. Li e estudei o trabalho colossal de Martin del Río, S.J., “Disquisitiones magicarum libri sex”. É um monumento à sutileza teológica e à credibilidade primitiva. Del Río e seus associados selecionaram da literatura grega, latina e cristã qualquer coisa que se assemelhasse ao extraordinário ou diabólico; e com essa massa de material, acumulada ao acaso, eles se desenvolveram e forjaram, acrescentaram tudo, desde procedimentos legais apropriados contra bruxos e feiticeiros até confissões espontâneas, ou às vezes forçadas, das próprias vítimas. E assim eles tinham os “fatos”. Mas como então poderiam explicá-los? Muito simples: uma vez que os fatos transcendiam as forças familiares da natureza e do homem, precisavam ser explicados pela presença de forças sobrenaturais. abundavam sob circunstâncias que eram suspeitas, irreligiosas e muitas vezes francamente imorais, como poderiam ser outras que não diabólicas? A partir de então, a suposição de um pacto explícito ou implícito com o diabo era muito simples de se elaborar.

A teoria do pacto do diabo foi, portanto, baseada em “fatos naturalmente inexplicáveis”, isto é, fenômenos não explicáveis ​​pela razão ou pela lógica. Ainda hoje, o argumento espírita segue mais ou menos o mesmo padrão. Os espíritas também baseiam sua afirmação em fatos que não podem ser racionalmente explicados.

 

Dom Frei Carlos José Boaventura Kloppenburg

Se quisermos criticar a “teoria do pacto” (e parece-me que tal crítica é urgente), nós também podemos seguir o procedimento dos críticos modernos da teoria espírita*: um reexame dos fatos reais, sem considerar uma teoria que por si só não ficará de pé. No meu estudo Espiritismo no Brasil intentei tal crítica. Por exemplo, é fácil ver que a psicologia, a psicologia profunda, a patopsicologia, a parapsicologia, a reflexologia e até o ilusionismo podem ajudar-nos tremendamente a interpretar a fenomenologia do estranho e do misterioso. Pense em tudo que a Ciência aprendeu sobre a facilidade humana de mentir, as leis do boato, a fraude do homem da confiança, falsas memórias, impressões subjetivas, o poder da fé preconcebida, as várias formas de ilusão, alucinações, mitomania, delírio de interpretação, automatismo psíquico, personificações do dinamismo subconsciente, transe, charlatanismo, o sistema pavloviano de sinalização e o reflexo condicionado, sugestão verbal direta ou indireta, percepções extra-sensoriais independentes das leis do tempo e do espaço, os vários modos de manifestando conteúdo subconsciente, a possível influência da mente sobre a matéria, etc. Sprenger, Del Río e Torreblanca, entre um grupo de comentadores dos séculos XIV a XVIII, não só ingenuamente não levaram nada disso em conta; eles se esforçaram para demonstrar a existência positiva do absurdo e assim publicamente demonstraram seu sentido não-crítico. Aceitaram sem questionar o fato de que os feiticeiros entravam em casas por portas fechadas, penetravam em chaminés ou se arrastavam por buracos; ou que se transformaram em ratos, gatos e outros animais, como descrito por Nicholas Remi, Vignati de Como, João Pico e outros. Bartolomeu de Spina elabora a história das bruxas que escoltavam sua rainha. Voando baixo sobre a Terra Santa, Sua Majestade decidiu pousar perto do rio Jordão. Quando finalmente chegaram ao rio, a água de repente secou e toda a tropa ficou tão espantada com a nova demonstração de poder da rainha que perderam o equilíbrio e caíram das vassouras[*]

É claro que se “fatos” como esses são a base para a teoria de um pacto implícito ou explícito com o diabo, devemos concluir que a teoria é fraca, para se dizer o mínimo. No entanto, penso que devemos considerar a situação dos veneráveis ​​teólogos e autoridades da Igreja de uma época anterior. Eles estavam vivendo em uma era de histórias estranhas e fantásticas sobre mágicos, feiticeiros e adivinhos. A confusão e a superstição do povo exigiam algum esboço cristão da vida. E, no entanto, o espírito dos tempos prontamente detectou o trabalho do diabo em eventos humanos. Além disso, tinham à sua disposição os relatos aparentemente jurídicos e prudentes daqueles homens sérios e competentes que compunham enormes trechos sobre o assunto. Também os teólogos e eclesiásticos eram homens de sua época e aceitavam, sem qualquer escrúpulo, a ordem científica contemporânea. Sua única alternativa, portanto, era uma interpretação “demoníaca” dos “fatos” dados. E eu uso a palavra “interpretação” propositalmente. Pois o que aconteceu foi um erro de interpretação. Para entender isso melhor, podemos comparar os teólogos do passado com os espíritas de hoje, pois os espíritas de hoje são os herdeiros e sucessores dos magos e adivinhos de ontem. Eles também apresentam uma série de fatos e coisas estranhas. Esta série de fatos deve ser explicada ou interpretada, e os espíritas apresentam como explicação satisfatória a chamada “teoria espírita” que diz com efeito que toda a série de fenômenos é o resultado perceptível de uma ação direta e provocada dos espíritos (ou melhor ainda, segundo eles, de almas desencarnadas) que é iniciado pelos próprios espíritas. Por outro lado, alguns teólogos, também os herdeiros e sucessores dos precursores que interpretaram as obras de mágicos e feiticeiros como definitivamente “diabólicos”, quando confrontados hoje com os fenômenos do espiritismo, constroem a “teoria demoníaca”, que diz, com efeito, que o diabo é o único agente de tais fenômenos. Estas são, naturalmente, teorias da interpretação; nada mais. Não concordo com a teoria espírita, nem com a teoria demoníaca, e ainda assim me considero católico.

E assim foi no passado o que diz respeito à magia e feitiçaria. A teoria da interpretação universalmente aceitável para os teólogos (e feiticeiros) era o “pacto com o diabo”.  Ainda assim, acho que essa teoria surgiu pela primeira vez nas mentes dos teólogos, que tiveram que explicar todos os atos estranhos realizados por pessoas aparentemente talentosas que produziu efeitos extraordinários sem saber por quê. Uma vez que a teoria se tornou difundida, os próprios feiticeiros se convenceram e se esforçaram para colocá-la em prática. Além disso, os feiticeiros, em sua maioria, eram mulheres (que são mais sugestionáveis ​​ao transe, como frequentemente observado hoje em centros espíritas), e em pouco tempo se acreditava firmemente que elas eram más e perversas – fazendo pactos com Satanás, voando em vassouras durante a noite, e ajudando em banquetes sinistros com os próprios demônios. Na terminologia moderna e, claro, exagerando um pouco, posso dizer que a primeira feiticeira que relatou minuciosamente a empolgante aventura de seu vôo em uma vassoura foi uma vítima histérica da mitomania e que o primeiro teólogo que inventou a teoria de um pacto demoníaco era um paranóico que sofria de delírios de interpretação.

 

Investigações recentes de psicologia dinâmica, parapsicologia, reflexologia e outras disciplinas mostram que a desigualdade entre causa e efeito não existe, ou pelo menos não é muito aparente. E, no entanto, é precisamente essa desigualdade que foi e continua a ser, em certos manuais teológicos modernos, a base da “teoria do pacto”.  E o próprio feiticeiro, ou a pessoa supersticiosa, geralmente não explica essa desigualdade. Para ele, uma coisa pode parecer natural. Ele sabe empiricamente que uma certa causa produz um certo efeito. Assim, quando o efeito é tão desejado, recorre a tal e tal causa. Por outro lado, a distinção teológica entre “Deus ou o diabo” não é absoluta o suficiente para a mentalidade primitiva do feiticeiro. Em sua perspectiva, existem muitos outros “espíritos” ou “forças” que não são nem Deus nem o diabo, mas que podem ser boas e de serventia para ele. Aqui, também, não é necessário postular um pacto explícito ou implícito com uma “pessoa” chamada “Satanás”. Uma simplificação como essa seria puramente teórica e totalmente apartada das realidades da vida. Mas esse foi precisamente o erro cometido e depois empregado como princípio básico em todos os procedimentos contra os feiticeiros. Todo trato teológico sobre feitiçaria começou com a exposição desse conceito. E por causa disso, a maioria dos feiticeiros foi deixada à sua ignorância, acreditando que com a ajuda do diabo eles foram capazes de produzir seus efeitos estranhos.

Finalmente, não vejo como teses teológicas européias, que são suficientemente tradicionais e que sustentam que o feiticeiro atua em aliança com o demônio na realização do mal, podem ser recuperadas. Pessoalmente, não aceito a realidade da feitiçaria evocativa, nem admito que isso seja possível. Todos os supostos “fatos”, na medida em que são reais, podem ser satisfatoriamente explicados sem assumir uma aliança diabólica. Refiro-me às teses teológicas européias como “suficientemente tradicionais”.  Mas, na verdade, durante o primeiro milênio da era cristã, o ponto de vista parece ter sido diferente. Até o século XIII, a Igreja se opunha veementemente à crença na realidade objetiva dos fenômenos da feitiçaria. Cito apenas um documento eclesiástico fundamental que por séculos encarna a atitude cristã. É chamado de “Canon Episcopi” atribuído ao Papa São Dâmaso e ao não reconhecido Concílio de Ancyra (314 dC), e foi solenemente incluído na legislação eclesiástica do Decretum Gratiani (qv, can. 12, n. 10). Esse “Cânon Episcopi” em particular trata das fantasias e ilusões de certas mulheres que afirmavam que podiam voar durante a noite a bordo de animais misteriosos e que se gabavam de seus poderes secretos. “Muitas pessoas”, diz o texto, “realmente acreditam que isso seja verdade”. 

Elas são engenhosamente iludidas por uma fraude e, assim, são desviados da verdadeira fé porque acreditam, com os pagãos, que existe algum outro poder divino além de Deus” (“Innumera multitudo hac falsa opinione decepta”, haec vera esse credunt, et credendo um retardo fidedigno, et errore paganorum involvuntur, cum aliquid divinitatis aut numinis extra Deum arbitrantur“).

Com franqueza, o documento ordenava a todos os sacerdotes que apontassem para o povo que esses fenômenos eram basicamente falsos (“haec omino falsa esse”), e um simples lance de imaginação.

O documento prossegue questionando sobre quem seria tolo o suficiente para acreditar que as coisas que se originam apenas na mente poderiam ocorrer também no corpo (“Quis vero tam hebes et stultus sit, qui haec omnia quae em solitário espiritu fiunt, etiam in corpore accidere arbitretur?”). Ele conclui com a afirmação lógica de que “todo aquele que acredita em tais fantasias, ou qualquer coisa que se pareça com elas, perde a fé” (“Qui talia et his similia credito, fidem perdit”).

Do ponto de vista teológico e cristão, a declaração acima parece-me ser a posição mais razoável para nós hoje.

[*N.T. – O padre C. M. de Herédia denuncia a mentalidade dos católicos ao inflarem a proporção e mesmo a intensidade dos fatos no meio da magia e do espiritismo, ao criticar um clássico de Lapponi que requintada e vivamente relata as maravilhas exibidas em uma sessão espírita a partir de depoimentos recolhidos de obras desprovidas de qualquer valor científico e sem nunca ter ele mesmo presenciado qualquer evento dessa natureza [As fraudes espíritas e os fenômenos metapsíquicos, ed. Vozes, 1953, p.66 ss.]

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