Jamais observamos no meio católico, seja através de blogs ou de livros, qualquer explicação científica, atenta e digna a respeito do quadro clínico e das diversas psicopatologias que um filho de Deus possa experimentar com colorações demonopáticas; e o imaginário dos [não muito] piedosos há muito tem sido nutrido de interpretações fantásticas contraídas do cinema e parcas narrações fantasiosas além de certo sensacionalismo acentuado dos próprios padres exorcistas que, em nossa época, parecem jamais terem se interessado pelo aspecto científico de seus problemas, relegando, tudo isso, a uma visão sempre espiritualmente burlesca, curiosa, pseudomística, desinformativa e por vezes cruel – como veremos em artigos próximos –  sobre o doente que poderá mesmo se acreditar possesso.

Por outro lado, um médico da autoridade de Jean Lhermitte, católico convicto, apologista e militante, versado em mística e teologia ao mesmo tempo que um psiquiatra e neurologista, apresenta-nos uma análise geral dos principais quadros demonopáticos que indica que nem tudo que assusta é diabo, e lança luz sobre praticamente todos os aspectos que os exorcistas nos narram impondo, por nossa falta de cultura e a deles, as forças demoníacas como único meio de explicação para questões amiúde esclarecidas e que jamais deveriam ter enfrentado a poltrona do exorcista.

 

Um texto extraído dos Études Carmelitaines, edição “Satan”; traduzido por Mario Umetsu.


 

As falsas possessões

Psicoses demonopáticas

Como pudemos constatar, sobretudo em relação ao julgamento a que Anne de Chantraine foi submetida, em tempos não muito distantes de nós era bastante perigoso estar sob suspeita de fazer negócios com o demônio, e as piores torturas deviam ser temidas. Hoje, ao menos neste ponto, nossa moral se tornou mais gentil e branda.

Embora a ciência psiquiátrica deva se manifestar com humildade perante outras disciplinas biológicas – pois se move em um plano que implica corpo e mente conjuntamente – , e embora ainda não saibamos como seja exatamente a tal “costura” entre mente e corpo, podemos reconhecer que nossa compreensão a respeito dos distúrbios da esfera mental avançou profundamente a partir do momento em que os consideramos não apenas como expressão de uma influência sobrenatural, mas como o testemunho de modificações no desenvolvimento ou no equilíbrio das funções psicofisiológicas. E, na atualidade, não há psiquiatra que não consiga encontrar também com a maior facilidade, sob a máscara da feitiçaria de outrora, os sintomas mais relevantes das psicopatias que, todos os dias, somos levados a curar.

O único objetivo de qualquer médico investigando o assunto deve ser rastrear a origem e a fonte da demonopatia, desvendar seus fios, muitas vezes muito emaranhados, identificar o processo em ação, seja psíquico ou orgânico, e finalmente curar ou pelo menos diminuir o desvios patológicos da mente. Esta é a sua tarefa, e se quiser, pode-se considerá-la humilde, pois não deve transgredir as fronteiras dos fenômenos naturais, mas permanecer alheia aos problemas muito mais elevados que exigem a atenção e os poderes de discernimento do filósofo e teólogo.

Portanto, nosso problema se limita exatamente a isso: se descobrimos sinais em certos sujeitos que afirmam estar possuídos pelos demônios, características que nos autorizam a relacionar a ideia de possessão demonopática a um processo mórbido, é isto uma doença autêntica?

É verdade que o diagnóstico dos distúrbios mentais difere um pouco do das doenças físicas orgânicas, pois estas produzem não apenas sintomas objetivamente óbvios, mas também evidências de natureza ainda mais positiva nas alterações da textura orgânica.

O mesmo não vale para as psicopatias, cuja base anatômica para a maioria delas nos é completamente confusa e inacessível, o que de forma alguma significa que seja inexistente – mas, mais uma vez, se essa revisão anatômica nos faltar, estamos autorizados a levar o diagnóstico de doença nos casos em que o desvio do espírito se apresente sob características sempre semelhantes, quaisquer que sejam a educação, a instrução e as condições sociais dos sujeitos que são afetados por ela. Além disso, podemos prever, perante uma determinada síndrome psicopatológica, qual será o seu desenvolvimento e o seu futuro, bem como as consequências sociais e médico-legais a que poderá estar exposta. É até singular notar que as reações psicopatológicas do homem mais elevado da civilização não são muito numerosas; o que oferece mesmo um aspecto multifacetado e muitas vezes pitoresco é a coloração, o próprio conteúdo do delírio, mas não sua estrutura íntima, seu fundamento, sua essência. Se um paranóico diz que é perseguido por ondas do além, pelos maçons, pelos jesuítas, por um personagem ou grupos de pessoas que podemos imaginar ou pelo demônio, a coisa termina por aí. Já psicopatia será mais ou menos rica, mais ou menos pitoresca; as queixas, as recriminações dos pacientes se revelarão mais ou menos plausíveis ou completamente improváveis, a evolução e o prognóstico não serão modificados mais do que o tratamento preventivo e curativo que deverá ser aplicado.

E, na verdade, seria muito exagero exigir do médico mais do que um diagnóstico rigoroso, acompanhado de um prognóstico preciso e sustentado por um tratamento eficaz.

Dito isso, propomos expor o que nos revela a análise dos fatos de possessões demoníacas que o psiquiatra é levado a praticar. Mas examinemos primeiramente sob que aspecto o possuído se apresenta tal segundo as descrições das obras mais difundidas. O que impressiona, parece-me, aos observadores não versados ​​na ciência das afeccções da mente, é a transformação moral do sujeito. Na verdade, ela parece transformada, penetrada por uma nova personalidade que se sobrepõe ou justapõe à sua real e habitual. Nestes relatos que podem ser encontrados na interessante documentação arrolada por T. K. Oesterreich [“Possession demoniacal and other among primitive races, in Antiquity, the Middle Ages and modern times”] a pessoa possuída não apenas causa a impressão de estar invadida por outro espírito, mas mesmo sua fisionomia, suas atitudes e seu comportamento social parecem transformados.

Será desnecessário recordar que essa aparente metamorfose não é constante ao longo do tempo e só se manifesta nos períodos em que a possessão está “ativa” e mais agudo – isto é, nos momentos de transe; mas essa mudança corporal, essencialmente dinâmica, revela-se muito pessoal a cada possuído, para que se dê a impressão de que, verdadeiramente, a fisionomia do sujeito se transforma em uma outra alheia.

“Todas as vezes que o demônio se apoderava dela”, diz Eschenmayer sobre uma mulher que se julgava possuída pelo espírito de um homem morto, “ela assumia as mesmas feições que ele tivera em sua vida e que eram muito particulares, então que era necessário, a cada ataque, manter essa mulher longe das pessoas que conheceram o falecido porque o reconheceriam imediatamente sob as feições da possessa”.

O que também chama a atenção é que o novo caráter, a nova atitude, a mudança de comportamento que caracteriza o sujeito em estado de transe ou crise de possessão, opõe-se traço por traço à personalidade primeva desses possessos. Também as testemunhas se surpreendem, chegam à indignação ao ouvir os piores insultos, as palavras mais obscenas proferidas por uma jovem cuja educação e moralidade podem ser considerados incompatíveis com esse desencadeamento das paixões mais baixas e dos discursos mais imundos. Da jovem de Orlach de quem fala Eschenmayer, diz-se que “durante esses ataques o espírito das trevas fala pela boca palavras dignas de um demônio em loucura, coisas que não têm lugar em uma donzela de coração reto; de blasfêmias à Sagrada Escritura ao Redentor, a tudo o que é sagrado. Observei pessoalmente fatos desse tipo, às vezes desconcertantes, porque realmente nos perguntamos onde essas jovens puras, criadas apartadas dos ruídos e agitações do mundo, foram capazes de aprender o vocabulário que utilizam, durante sua crise, com arrebatada violência.

Os exemplos de possessões demoníacas que encontramos tão numerosos na abundante literatura que lhes foi dedicada caracterizam-se sobretudo pelo fato de que a invasão da personalidade dita demoníaca só ocorre durante determinados estados, chamados de crise ou transe, no que o possuído não mais se controla e até perde a consciência de sua própria identidade. Não se poderia dizer, portanto, que haja uma cisão na personalidade, e seria preciso persuadir-se, com Eschenmayer e Oesterreich, de que a perda ou desvanecimento da consciência se afirma, no caso da regência, como o caráter essencial da possessão demoníaca. A essa suspensão das funções da consciência se acrescentaria um total desconhecimento do que aconteceu durante a crise.

É inegável que tais fatos ocorreram e ainda ocorrem hoje, mas entendemos sua origem e natureza melhor do que nossos antecessores. De fato, há uma afecção cujos exemplos são inumeráveis ​​e que se especifica pela perda temporária da consciência do sujeito e a transformação deste em um verdadeiro autômato invadido por ideias, sentimentos, lembranças bem diferentes daquelas que em sua mente habitam durante o estado normal, e que até se mostram totalmente opostas à sua personalidade real. Essa afecção é chamada de epilepsia; é o morbus sacer, o mal sagrado, o “grande mal”, o “mal comicial” dos antigos.

Ao contrário do que pensa o vulgo, a epilepsia não se manifesta apenas pela crise convulsiva, que pode acometer também os animais, mas, ainda mais frequente do que se imagina, por mudanças bruscas na personalidade moral, convulsões catastróficas cuja duração pode comprometer desde a curtos momentos até horas e dias inteiros. O enfermo não se lembrará de nada que ocorreu durante tal rapto da consciência. Porém hoje nos é possível definir a epilepsia com absoluto rigor e precisão, bem como especificar a natureza da desordem mental, graças à detecção de ondas especiais reveladas pelo eletroencefalograma (EEG).

Mas se a epilepsia pode bem simular um estado de possessão demoníaca, há outra patologia também muito comum, que é encontrada como subjacente às cenas acima descritas: trata-se da “grande neurose” de Charcot, a histeria. Não há dúvida de que é a essa psiconeurose que devemos referir a maioria dos casos de possessão caracterizados por transes ou crises durante os quais a personalidade do sujeito parece transformada e que são cercadas por manifestações turbulentas, teatrais, tanto mais excessivas quanto o público é mais numeroso para contemplá-los e se emocionar com elas. É verdade que o estado de consciência do histérico é muito diferente daquele do epiléptico, e que se existe uma turvação dela, não atinge a profundidade da dissolução que a epilepsia nos revela; entretando, como demonstrei em outra ocasião (J. LHERMITTE, Qu’est-ce que l’hystérie? – Année Théologique, 1942), a “grande neurose” de Charcot não se revela, composta apenas de trapaça, engano, teatralismo, zombaria, mitoplastia e “patoplastia” como alguns médicos afirmaram. Encontramos sobretudo uma genuína desordem da mente e da consciência, mostrada pelo curioso comportamento do eletroencefalograma, como revelado por notáveis estudos de Titéca (Bruxelas).

Que a consciência do histérico em crise não se revele marcada por um estado de dissolução total ou geral no sentido jacksoniano, como no mal-estar epiléptico, não há dúvida; mas realmente existe relativa suspensão ou considerável enfraquecimento de certas faculdades psíquicas. Compreendemos assim muito bem por que muitos proeminentes psicólogos como Oesterreich em seu importante trabalho dedicado ao estudo dos possuídos consideram temporários os estados de possessão em que a individualidade normal é subitamente substituída por outra personalidade, e para os quais o retorno ao normal não deixa memória. Para o autor, o estado deve ser classificado como “sonambulismo”. Se deixarmos de lado a afirmação relativa à perda total das memórias, que ignora a diferença que separa a histeria da epilepsia, poderemos também subscrever a tese do autor.

Como indiquei acima, se a grande neurose histérica se revela essencialmente contagiosa, e as experiências de La Salpetriere, no tempo de Charcot, trouxeram à luz toda a sua realidade, é obviamente devido à demonopatia a imensa maioria – senão todas – as epidemias de possessão que foram tão numerosas no passado, em épocas em que as manifestações da “grande simuladora” eram apenas imperfeitamente conhecidas

Todos se lembram das epidemias de possessão que assolavam o mundo numa época em que a psiquiatria mal começava; no entanto, os exemplos apresentados por essas epidemias acabam por ser marcados com o selo mais puro da psiconeurose histérica ou do pitiatismo; ou seja, dessa neurose em que a simulação e a mitomania agem juntas. Não se deve pensar, no entanto, que nossos predecessores nada sabiam sobre o pitiatismo. Se nos pedissem uma prova, tomá-la-íamos no caso de Marthe Brossier cujo julgamento transcorreu sob o reinado de Henrique IV (No caso de Marthe Brossier e as ideias desta época sobre os possuídos, consultaremos o capítulo XVI da importante obra de R.P. Bruno de Jésus-Marie intitulada “La belle Acerie” – Desclée de Brouwer, 1942). Marthe é uma jovem sem fortuna, a mais velha dentre quatro irmãs da prole de um pai bastante indiferente. Ansiosa para se casar e vendo seu projeto fracassar, cortou seu cabelo bastante curto e adotou roupas masculinas, como Joana d’Arc. Certa vez, no ano seguinte, insurgiu-se de súbito contra Anne Chevion, uma amiga sua, ferindo seu rosto com as unhas e a acusando de “frustrar todos os mais estimados sonhos”. Considerada possuída pelo demônio por causa da impetuosidade de suas reações, e “as maravilhas que ela disse contra os huguenotes” (fato transcorrido em 1599, precisamente o ano do Édito de Nantes), Marthe foi considerada possuída e exorcizada com grande solenidade. Muitos criam que Belzeb, inchou a barriga e depois dobrou seu corpo com tanta força para trás que sua cabeça tocava os pés; tudo sob impetuosos gritos da possessa que muitas vezes exclamava “sou mais atormentada do que se estivesse no inferno”; e sendo desafiada pelo exorcista, dizia: “você me fará perder meus huguenotes!”.

Diante do escândalo, Henrique IV decidiu internar Marthe no Grand Châtelet, onde era vigiada por médicos e clérigos. Então, diante da afirmação dos especialistas de que não se tratava de uma posse real, Henrique IV ordenou que Marthe retornasse à casa do pai que residia em Romorantin. E então, o que aconteceu? Temos os documentos do julgamento, e nada poderia ser mais instrutivo do que conhece-los. O doutor Marescot, ajudado por três de seus colegas, examina a garota possuída.

Ela é capaz de entender línguas que jamais aprendeu, como se afirma? Não; interrogada diretamente em grego e latim, ela fica calada. Quando exorcizada, ela simplesmente cai em um desmaio, e suas coxas tremendo como os flancos de um cavalo exausto (o que é fácil de imitar); Marthe zomba do exorcista, mas sabatinada por Marescot, ela admite que o diabo a abandonou. E Marescot conclui: Nihil um daemon; multi ficção; um morboso pauca.

Continuando sua demonstração, Marescot se pergunta quais critérios poderiam ser usados ​​para decidir sobre a realidade da possessão. Convulsões? Mas malabaristas e lacaios fazem o mesmo; insensibilidade a picadas? Também isto os lacaios e os malabaristas conseguem maravilhosamente; a ausência de fluxo sanguíneo quando a agulha passa pela pele? Mas isso apenas atesta que os vasos foram poupados; ventriloquismo? Mas Hipócrates já descobrira o dom em pessoas que além de qualquer suspeita de bruxaria. Discernimento de objetos? Mas Marthe cometia os maiores erros: apresentamos a ela uma chave embrulhada, dizendo-lhe que o objeto era um fragmento da verdadeira Cruz e Marthe respondeu com todos os sintomas diabólicos imagináveis e inimigináveis; levitação? Mas se algumas pessoas pensaram ter visto Marthe suspensa no ar sem apoio, foi à tarde, quando os ânimos foram aquecidos por uma boa refeição; pela manhã, nada semelhante havia acontecido.

Marescot, cujo poder de análise é tão notável, não para por aí; e nosso colega se pergunta qual pode ser a causa dessa possessão simulada. E ele descobrira tudo isso paralelo à ganância de Marthe e seu pai, que recebeu somas de dinheiro para que sua filha se recuperasse. Mas Marescot finalmente questiona como poderia esta Marthe, cuja educação foi tão miseravelmente negligenciada, poderia ser capaz de tantas trapaças. No entanto, a investigação mostra justamente que Marthe leu muitas obras em que falam de fatos atribuídos ao diabo e, por outro lado, as pessoas lhe diziam que ela “tinha o diabo em seu corpo”.

Encontramos o papel da sugestão tão vigorosamente denunciado por Bernheim – e depois por Babinski – em um paciente que tive a oportunidade de observar dentre tantos outros. Trata-se de uma jovem freira que desde os quinze anos foi assediada por provações sexuais: obsessões e talvez compulsões. Seu Diretor teve a péssima ideia de lhe dizer que o demônio estava agindo sobre ela, e de repente ela se sentiu invadida, duplicada por dentro, e enfeitiçada pelo espírito maligno. A partir daí, redobramos os exorcismos até que fossem praticados diariamente. Durante estes, nossa paciente se entrega a mil contorções e gestos das mais selvagens e absurdas diabruras. Pior ainda, entre cada exorcismo ela começava a quebrar objetos e profetizar, em rompantes que destruíam a paz e a quietude típica daquele convento.

Procedemos ao exame deste paciente na presença de um exorcista devidamente habilitado, tendo o cuidado de não mais aplicar o ritual de que se havia feito uso excessivo, limitando-nos à oração a São Miguel que se recitava no final das missas privadas . Tão logo alcançamos o “defende nos in praelio”, ela se levantou, fitou-nos sob um olhar incendiário, cobriu-nos com insultos grosseiros, e finalmente arrancou a touca, o véu e a touca e os atirou violentamente a nós. Pouco depois, começou a girar, dançar, adotar atitudes espetaculares análogas às observadas na Salpêtrière nos dias de Charcot e Paul Richer.

Em um segundo exame, os mesmos fenômenos foram reproduzidos, e então decidimos aplicar eletrochoque e colocar esse paciente em confinamento solitário. Após um mês desse tratamento, ela foi completamente liberta de seu pavor de possessão demoníaca.

Aqui está um segundo exemplo: uma jovem de vinte anos chama a atenção por seu comportamento e vem consultar um religioso porque, segundo ela, nas tardes de sexta-feira sua testa está coberta de um fluxo sangrento; e para provar a veracidade de suas alegações, esta jovem mostra, de fato, um lenço embebido em sangue vermelho que, após a realização de um exame especial, foi constatado ser realmente sangue humano desprovido de qualquer substância estranha. A mãe consultada relata que há algum tempo a filha está um pouco absorta sobre sua própria pessoa: “ela crê ser uma santa”; “há como duas pessoas nela; fica acordada até tarde nutrindo ideias pra lá de estranhas”.

Então, uma noite, entre onze e meia-noite, a menina, segundo sua história, foi visitada pelo diabo. Um homem saltou diante de sua cama; simultaneamente as luzes se apagaram, enquanto um brilho vermelho inundava o cômodo. A visão desse ser, aparecendo na forma de um homem, encheu-a de desgosto. “Eu notei uma coisa curiosa,” ela comentou. “Seus olhos me seguiram e seu corpo se moveu apenas de acordo com meus próprios movimentos.” Essa pessoa perturbadora tentou beijá-la na testa e nas bochechas, para dominá-la, mas sem sucesso. Às vezes ela parecia ouvir o diabo.

Ela relata que esses estranhos fenômenos a levaram muitas vezes ao seu diretor espiritual, que parecia não entender sua condição, e isso a desarmou completamente. Para verificar, na medida do possível, a materialidade dos factos alegados pela nossa doente, foi solicitado a um dos seus acompanhantes, de cuja honestidade não se podia suspeitar, exercer uma vigilância particularmente atenta sobre Ma (seu prenome), noite dia por duas semanas, principalmente às sextas-feiras. Eis o resultado do inquérito:

“Vi aberturas se formarem em sua testa e certo fluxo sanguíneo, mesmo enquanto caminhávamos de braços dados, várias sextas-feiras correndo. Também vi os sapatos de Ma sendo tirados sem que ela se mexesse; o assento de sua cadeira queimou enquanto ela estava nela, sem que ela se machucasse. Na capela dos beneditinos, as cadeiras moviam-se atrás de Ma, mas ninguém podia ser visto.” “Também toquei”, continuou o observador, “a ponta de uma de suas costelas, projetando-se sob seu braço direito;’ A própria mãe juntou as peças novamente, depois de uma gargalhada. Às vezes, sem causa aparente, ela caía da cama. Certa noite, aconteceu algo muito estranho: de repente ouvi Ma gritar; ela acendeu a luz, pegou um pacote e depois apagou a luz novamente; havia um cheiro de queimado e Ma me entregou um colete, parcialmente queimado e carbonizado. Às vezes, seu vestido estava manchado de sangue, mas não sei dizer de onde vinha.” Apesar das extraordinárias estranhezas que marcaram a conduta de Ma, apesar dos fatos que deveriam ter ofendido o senso comum, nosso supervisor ​​declarou acreditar que os fenômenos singulares que observara em Ma fossem autênticos. “Existem suficientes elementos que não permitem manter qualquer sombra de dúvida”.

Durante essas observações, estávamos realizando uma investigação sobre a família de Ma e sua história. Soubemos que o pai de Ma era alcoólatra, assim como sua avó, por parte de mãe. Ma, descobriu-se, tinha recebido educação suficiente para obter um certificado elementar. Mas o mais interessante é que Ma era uma mentirosa comprovada, e evidentemente uma mitomaníaca: depois de uma peregrinação a Lourdes, sua mãe se queixara ao direto espiritual nestes temos: “que grande idéia o senhor teve! Arrastou minha filha para Lourdes e trouxe de volta um demônio!”


Diante de manifestações tão críticas, pedimos a Ma que viesse ao meu consultório, para que pudéssemos observar em primeira mão o fluxo sanguíneo que escorria todas as sextas-feiras na cabeça e na testa, segundo ela mesma. Nossa expectativa foi frustrada porque, na mesma manhã em que Ma se apresentou a nós, ela nos enviou uma carta, cujos trechos mais essenciais gostaríamos de dar aqui.

“Gostaria de me abrir, mas me sinto paralisado e não consigo falar.

Por mais de seis meses estive em luta interior com o diabo; é como uma guerra feroz dentro de mim entre o espírito de Deus me empurrando para o bem e outro espírito me atraindo, me impelindo para o mal. Todas as histórias que você conhece são apenas uma mentira perpétua, e eu gostaria de poder lhe dizer como sou infeliz.

No começo, fui empurrado para mentir… deixei-me levar cada vez mais, muitas vezes forçado a falar, a agir contra minha vontade.

Nunca tive visões terríveis do demônio, mas às vezes o sinto muito perto de mim. Foi ele quem me empurrou para queimar minhas roupas íntimas. Apesar de mim mesma, não me lembro como.

“Imaginei todas essas histórias, não sei por qual motivo e me sinto cada vez mais infeliz, não poder falar quando tanto gostaria de fazê-lo…


“No entanto, existem algumas marcas visíveis e reais da presença desse demônio, odores cheirados em diferentes lugares, barulhos na igreja, algumas outras coisinhas que aconteceram na casa do meu amigo…

“Só nos últimos dias que entendi a gravidade do mal que tenho feito”.

“O que não compreendo, sobretudo, é que, no meio das minhas trevas Deus permanece oculto – abandono até merecido pelos meus pecados- , sinto-me cada vez mais chamada a uma vida de reparação. Às vezes acabo duvidando se ainda não seria um golpe do demônio, e me sinto doente; você não pode imaginar o quanto eu sofro assim, além disso, com dores de cabeça toda sexta-feira”.

Certamente, o caso que acabamos de relatar parece mais complexo do que muitos outros do mesmo tipo, mas, no entanto, encontramos nele o caráter ostensivo, teatral, espetacular, que especifica tão perfeitamente a pseudo-possessão dos histéricos; se acrescentarmos a esses traços a mentira, a mitomania, a duplicidade, reconheceremos que a identificação é bastante fácil. O que deve ser lembrado aqui de forma muito mais particular são os esclarecimentos que Ma dá sobre seu estado psicológico. Ela teria sido levada a mentir, a inventar histórias do zero, e se arrependeria de sua conduta. Muitos histéricos confessaram essa compulsão interna, mas em sua consciência as noções de verdadeiro e falso, que nos parecem tão claras e distintas, são geralmente borradas como em uma névoa, ou então são tão instáveis que seria muito imprudente aceitar tais alegações com qualquer medida de convicção.

Um último exemplo desse tipo: uma freira, pertencente a uma congregação de ensino, era inclinada a hábitos sexuais desde os oito anos de idade e também muito sujeita a obsessões e escrúpulos; conseguiu, apesar de tudo, por força de vontade e contenção atravessar aquelas etapas que levam do postulado aos votos perpétuos.

Mas agora, perto do trigésimo ano, a obsessão do demônio assombra seu espírito; ela não suporta mais a visão de um crucifixo, de uma imagem piedosa; ela se convence de que está possuída pelo espírito maligno e pede para ser exorcizada. Mas, apesar do exorcismo, os fenômenos demoníacos persistem e são crescem em intensidade. Sim, o demônio está lá, vigiando-a durante a noite, amarrando-a à cama, às vezes despindo-a e deixando-a completamente nua. Querendo acabar com isso, ela assina um pacto com o diabo e escreve com uma caneta mergulhada em seu sangue estas palavras: “Ó Satanás, meu Mestre, eu me entrego a ti para sempre”. Enquanto Pascal carregava seu pungente Memorial contra o peito, ela guardava esse talismã diabólico consigo dia e noite; então, tomada de remorso, sofreu moções de suicídio tomando vários comprimidos de gardenal de uma só vez.

Neste caso, como nos anteriores, o exorcismo foi em vão porque se tratava de psicose e não de possessão; e acrescentamos que, em factos desta espécie, onde a sugestão mostra tão grande peso no determinismo de fenômenos mórbidos, é preciso ter cuidado não só com qualquer exorcismo, mas também com qualquer exercício que tenderia a manter na mente do sujeito a idéia de posse. Além disso, como Marescot nos lembrou, o Ritual Romano nos ordena a não acreditar facilmente na possessão; e ele acrescenta: “porque muitas vezes os muito crédulos são enganados, e muitas vezes os melancólicos, lunáticos e fascinados enganam o exorcista dizendo que estão possuídos e atormentados pelo diabo, mas precisam bem mais dos remédios do médico do que do ministério dos exorcistas”.

Além do tipo de demonopatia que se manifesta em crises ou transes, acompanhados por uma dissolução mais ou menos completa da consciência, devemos agora examinar uma espécie muito diferente, que merece ainda mais atenção. Tenho em vista aqui o que tem sido chamado de forma “lúcida” de possessão. A expressão não é muito feliz, e tem muito sabor da época em que se falava em “loucura lúcida”; eu sinto que é preferível chamar o fenômeno em questão de “delírio de possessão” ou “delírio demonopático”.

Quais são as características que nos permitem diferenciar esta forma de posse das que já discutimos? A mais importante é que os pacientes que estamos examinando não são afetados por ataques, crises ou transes; sua consciência permanece lúcida, pois eles estão plenamente conscientes do que está acontecendo dentro deles, corporal e espiritualmente, e dão descrições minuciosas, pitorescas e singularmente reveladoras disso.

Um dos exemplos mais significativos desse estado de espírito é o do padre Surin, exorcista dos possessos de Loudun. Este sacerdote, cuja vida mística era altamente desenvolvida, dinâmica e de grande santidade, sofria de estranhas perturbações que descreve em carta a um amigo:

“Estou em conversas perpétuas com demônios e tive aventuras que levariam muito tempo para descrever. Tanto que, durante três meses e meio, nunca fiquei sem um demônio pairando sobre mim. O demônio sai do corpo do possesso e, entrando no meu, derruba-me, agita-me e me atravessa visivelmente, possuindo-me por várias horas como um endemoninhado. É como se eu tivesse duas almas, uma das quais é despojada de seu corpo e da forma de seus membros e se mantém à distância, observando a outra que usurpou seu lugar. Os dois espíritos lutam no mesmo campo de batalha – que é o corpo- e a alma parece estar dividida.”

Ele acrescenta a título de pós-escrito:

“O diabo me disse: vou privá-lo de tudo e você realmente precisará manter sua fé: vou te bagunçar.. e por isso mesmo, para manter um mínimo de sanidade, sou obrigado a deixar uma espécie do Santíssimo Sacramento em minha cabeça, como uma Chave de Davi para abrir minha memória”.

Em seu trabalho intitulado Estudos em História e Psicologia do Misticismo, Delacroix relata várias outras características relevantes para a condição do padre Surin, encontradas em um manuscrito na Bibliotheque Nationale. Ali se afirma que os sofrimentos do infeliz padre Surin não duraram menos de dois anos. “Ele estava tão exausto que não conseguia pregar ou manter uma conversa. Até ficou mudo por sete meses, foi incapaz de se vestir e despir e, finalmente, de fazer qualquer movimento. Caiu em uma doença desconhecida contra a qual todos os remédios eram ineficazes. Várias vezes teve impulsos de cometer suicídio e logrou uma séria tentativa de fazê-lo. Apesar de tudo isso, sua alma não se desviou inteiramente da atenção a Deus; muitas vezes, em meio aos seus tormentos infernais, era fortemente movido a unir-se a Cristo. . . . Em suas provações, ele estava consciente ao mesmo tempo do desespero e do desejo de agir de acordo com a vontade de Deus”.

Como era impossível naquela época analisar a natureza dos problemas psíquicos que afligiam o padre Surin, ele foi considerado louco e classificado nos registros de sua Ordem como mentalmente perturbado.

Nada poderia ter sido mais judicioso, e devemos ter extrema compaixão por esses infelizes, cujo sofrimento incessante é inexprimível e, muitas vezes, os leva ao suicídio.

Por muitas razões, o caso do padre Surin merece atenção de qualquer psiquiatra: a natureza progressiva e incurável da doença, os distúrbios gerais que oprimiam tanto a mente quanto o corpo, as inibições, impulsos, contradições, alucinações auditivas, a palavra falada atribuída ao diabo , a sensação de uma cisão da personalidade, ou de a mente ter sido aprisionada por uma força mais forte que a da vontade, o sentimento contínuo de coação – todos esses elementos psicológicos anormais ou incomuns raramente foram melhor descritos e analisados do que por Padre Surin.

Seria fácil encontrar exemplos de casos semelhantes na literatura dedicada à demonopatia, mas, como o espaço é limitado, acho melhor oferecer algumas observações sobre casos que eu mesmo estudei – casos que respondem ao tipo de possessão que temos aqui em mente.

Recebi um dia a visita de um homem de sessenta anos, funcionário aposentado de algum ministério, que me disse que há muito tempo sofria as investidas do demônio, que o obrigava a sofrer estranhas afrontas e que nunca o abandonava, dia ou noite; para resumir, ele estava possuído. Este homem foi criado em um colégio religioso; desde a infância ele foi perseguido pelos problemas do sexo e se entregou a práticas sexuais solitárias, com alguma tendência ao homossexualismo. Casou-se, porém, e se depois teve alguns lapsos, não foram numerosos, e nunca homossexuais. No entanto, foi incessantemente atormentado por certas obsessões, e no esforço para combatê-las refugiou-se cada vez mais na oração, na luta espiritual e na penitência. Na verdade, ele foi atraído cada vez mais para a oração, até que chegou o dia em que sentiu que uma estranha transformação havia ocorrido dentro de si. Tudo o que acontecia ao seu redor tornava-se simbólico: assim, o canto de um galo significava libertação moral; objetos e cores escuras, roupa suja, lama, as grades dos ralos, cantos escuros dos apartamentos, cinzas de cigarro, cascalho, lixeiras, troncos de árvores, fundos de panelas, tudo isso representava espíritos malignos; enquanto os bons espíritos eram simbolizados por ouro, prata, molduras douradas, espelhos, qualquer coisa azul, luzes, flores de cores vivas.

No entanto, apesar deste simbolismo irracional, o homem continuou a levar uma vida bastante tranquila até que um dia, caminhando perto do lago no Bois de Boulogne, ouviu uma voz dirigir-se a ele com palavras que são irrepetíveis. Pegou um táxi e voltou para casa em estado de extrema ansiedade: ao chegar em casa, disse à esposa: “desta vez o diabo está comigo; estou possuído.” Desde esse episódio, ocorrido muitos anos antes, o espírito maligno nunca mais o deixou. Ele sentia sua presença incessantemente; o dia todo o diabo falava com ele, insultava-o, perseguia-o com as obscenidades mais imundas ou com as palavras mais incongruentes. Muitas vezes, também, o diabo o desafiava ou ordenava e o lembrava de falhas passadas, que ele chamava de “culpae”. Um dia, a caminho de Ville-d’Avray, o Maligno o ameaçou com as palavras: “se for mais longe, você é um homem morto”. O espírito maligno não apenas o assaltava com expressões imundas e tentava enfurecê-lo repetindo seus pensamentos, mas também trazia diante de seus olhos as mais surpreendentes imagens de luxúria – cenas de erotismo totalmente desenfreado que lembravam as tentações de Santo Antônio, mas com uma característica específica, desde que todas essas orgias, de um esplendor erótico inimaginável, eram caracterizadas por uma homossexualidade cínica. O diabo também costumava aparecer para ele na forma de um macaco híbrido com cão de caça, e ficava diante dele, zombando ou ameaçando, levantando-se nas patas traseiras, exibindo ameaçadoramente uma língua vermelha e mostrando seus dentes afiados. O desgraçado lançava-se furiosamente sobre este simulacro, atirava-lhe pedras, açoitava-o ou pregava-o ao pelourinho. Felizmente os bons espíritos trouxeram suas consolações para compensar-lhe todos os seus sofrimentos. Esses bons espíritos falavam através de uma estátua da Virgem e através do crucifixo, ou então na forma de serpentes azuis sinuosas. O possesso tinha dentro de si duas influências opostas: a do demônio, que permaneceu dominante, e a dos bons espíritos, aos quais muitas vezes apelava em busca de ajuda. Conhecendo as mil e uma artimanhas do diabo, costumava fazer experimentos e empregar uma série de meios de defesa espirituais e materiais: indiferença aos insultos, ironia, recitação de uma oração, “auto-exorcismo”, silêncio absoluto, arranjo de estátuas em triângulos de poder para se opor a qualquer intrusão demoníaca. Mas com muita frequência o espírito maligno acabava com essas defesas frágeis, zombava dele e o fazia parecer ridículo aos seus próprios olhos.

Como eu estava curioso para saber mais sobre a origem desse delírio demonopático, pedi ao meu paciente que escrevesse detalhadamente sua triste história. Obtive assim o relato circunstancial de seus sofrimentos e, sobretudo, do plano de ataque do diabo. Pareceu-me muito notável que esse homem, que nada sabia de psiquiatria, me desse quase exatamente as mesmas fórmulas que devemos ao pioneiro do estudo do automatismo mental, G. de Glerambault. Aqui, então, nas próprias palavras de nosso paciente, está a maneira pela qual o diabo age sobre a mente. Ele trabalha pela introspecção do pensamento, “pensamento que se sabe pensar”, que assim produz a ilusão da dualidade do espírito; pela evocação involuntária de memórias, de palavras uma vez ouvidas – mesmo e talvez especialmente as mais obscenas; a lembrança também dos pecados passados, das “depravações sexuais”; a linguagem automática que passa pelos lábios sem a participação da vontade; a aparente alienação da vontade; troca involuntária de discurso com o diabo e a compulsão de entreter pensamentos ou usar expressões muito fora dos hábitos normais da vítima; sugestões e intrusões na mente de sentimentos de inferioridade, ódio, ansiedade, dúvida, incerteza, que, em seu estado extremo, causam confusão; finalmente, o espírito maligno obscurece a memória de certas imagens ou cenas, trazendo à mente concepções distorcidas (ilusões sensoriais) ou concepções sem objeto, ou seja, alucinações auditivas, psicomotivos verbais, visuais e cenestésicos.

Num trabalho dedicado ao estudo de “L’Image de notre corps“, analisei detalhadamente o caso de uma jovem, Sybil, cuja história patológica é tanto mais notável quanto se estende por períodos muito longos, e que a origem e a causa material do delírio de posse eram claramente rastreáveis. Essa jovem me fora enviada por um exorcista que ela havia consultado. O sábio padre decidiu que se tratava de um caso patológico e não de possessão genuína e, portanto, pediu-me que a tratasse. Qual foi a história dela? Encontrava-se convencida de que estava enfeitiçada e sob a influência do diabo, especialmente à noite. No momento em que ela estava prestes a adormecer, o diabo vinha até sua cama, despojava-a de seu corpo robusto,“dobrava-a” e a levava dupla para uma esfera celeste que ela chamava de “astral”. Lá ele se divertia em torturá-la, feri-la com golpes fortes, açoitá-la, arremessá-la em arbustos espinhosos ou, pior ainda, disparar tiros de revólver em seu corpo e forçá-la a suportar as mais terríveis humilhações. A pobre menina tentaria defender-se desse poder pavoroso: tentou recuperar a posse do “duplo” do qual fora arrancada. Ela implorava ao diabo para devolvê-lo a ela mesma, e sua luta e súplicas sempre duravam muito tempo, até que ficava bastante esgotada, quando o diabo finalmente consentiu em devolver-lhe o corpo que lhe havia tirado. Curiosamente, esse “duplo” nem sempre foi devolvido inteiro; às vezes lhe era restituído pouco a pouco, faltando-lhe um braço ou uma perna, e só depois de uma luta violenta ela recuperava a posse completa de seu corpo. Às vezes, exausta de suplicar ao seu tirano, ela se levantava da cama, mas ao sentir que faltava seu corpo, ela tropeçava, suas pernas vacilavam e ela caía no chão. Nessas ocasiões, Sybil às vezes era capaz de observar o que acontecia ao seu redor e era atingida por fenômenos estranhos; objetos estavam se movendo e se dobrando, e ela parecia capaz de entender a linguagem rítmica do despertador.

Ela foi tomada por compulsões e inibições violentas totalmente opostas à ação de sua vontade; tornou-se vítima de alucinações auditivas e visuais; mas, mais frequentemente do que isso, conseguia entender o que o diabo pensava apenas ao vê-lo torturar seu “duplo”.

Como o padre Surin e todos os outros que sofriam do delírio da possessão, Sybil usava o que pensava ser o meio mais eficaz de defesa contra o diabo; assim, borrifava a cama com água benta, sempre colocava o rosário no pescoço e, seguindo uma velha superstição, muitas vezes queimava alguns torrões de açúcar ao pé da cama. Mas, infelizmente, essas defesas quase sempre se mostraram insuficientes ou completamente ineficazes. Seu estado piorou progressivamente e qualquer convívio com outras pessoas tornou-se impossível, de modo que ela teve que ser internada em um hospital psiquiátrico onde adoeceu gravemente.

Antes de atingir esse estágio, no entanto, Sybil, ao que tudo indica, permaneceu bastante razoável em sua vida diária; morou com o pai e por muitos anos cuidou da casa sem provocar nenhuma crítica séria por sua conduta. Ela era reservada e piedosa e nunca caiu em nenhum dos pecados da carne; foi somente durante seus transes que imaginou que o demônio a profanava, entregando-se com grande violência a atos cuja natureza pode ser facilmente adivinhada. Na maioria desses casos é impossível descobrir, além de defeitos hereditários, a origem desse delírio; mas com Sybil a causa da doença tornou-se bastante evidente. Aos doze anos sofria de encefalite letárgica epidêmica e passara muitos meses no hospital em Paris. Hoje conhecemos as consequências remotas que podem seguir esta doença, e a causa do delírio demonopático é neste caso clara.

Passemos agora a outro caso relacionado com o último. Aqui, a paciente era uma jovem de família muito boa, que havia recebido uma educação muito cuidadosa. Ela me foi enviada pela madre superiora de uma comunidade religiosa na qual desejava muito entrar; mas sua maneira um tanto estranha foi uma barreira para ela ser admitida.

Eu interroguei essa jovem e, quando ganhei sua confiança, contou-me sobre sua vida, seus entusiasmos e desânimos, suas ansiedades e esperanças.

“Desde a minha infância”, disse ela, “de vez em quando tenho a impressão de estar em outro mundo e de conhecer a Deus, o Pai de Jesus Cristo; quando ainda era uma garotinha tive revelações sublimes e até visões sobrenaturais. Um dia, por exemplo, vi o teto se abrir e uma nuvem se romper diante dos meus olhos; então Deus falou comigo em meu coração”. Aqui o caso é obviamente de “pseudo-alucinação”, ou alucinações psíquicas acompanhadas de uma aguda sensação de presença.

Às vezes, também, ela sentia uma respiração suave tocá-la à esquerda; isso, disse ela, era “como uma infusão de Deus”. Mais tarde, ela ouviu “em seu pensamento” Deus lhe dizendo: “Chegaremos a você para fazer nossa morada.” Finalmente, sob a influência desse sentimento constante do Divino que parecia penetrá-la, ela se convenceu de que em breve receberia uma ordem para realizar uma missão espiritual na terra, e começou a se questionar e a buscar nas coisas externas sinais e revelações desta missão.

Durante todo o tempo em que esses estranhos fenômenos ocorriam, a menina passava por um grande sofrimento físico: com o tempo, tomaria a forma de uma fraqueza avassaladora; noutra, sentia uma dor na nuca que “trazia muitos pensamentos”; ou sentiria várias dores viscerais, como caracterizam o que se chama de “hipocondria dolorosa”. Mas o que mais a incomodava era a sensação de que o diabo rondava incessantemente ao seu redor; na verdade, ela se sentia como se fosse esmagada entre duas forças opostas, uma divina e outra diabólica. Nunca foi afetada por alucinações visuais reais, mas em várias ocasiões parecia-lhe que o diabo se jogava sobre ela, pressionando-a no lado esquerdo, o lado do coração, e esse fenômeno, que acontecia à noite, causava profunda perturbação. Quando lhe pediram para dar sua interpretação desse estranho acontecimento, ela respondeu que o diabo desejava imitar a união mística que ela já havia recebido.

Na véspera da festa da Imaculada Conceição, o diabo a visitou deitada em sua cama. “Era”, ela nos disse, “como um grande dragão descendo sobre mim; Eu não o vi, mas o senti perfeitamente bem”; e “se o diabo me persegue sem tréguas”, continuou ela, “é porque pratiquei muita ascese, e ele quer me fazer tropeçar nos caminhos do Senhor, pois está escrito em Eclesiastes: “Meu filho, se você comprometer-se-á a servir ao Senhor, prepare sua alma para a provação’”.

Pude acompanhar o progresso dessa paciente por cinco anos e seu estado nunca melhorou perceptivelmente. Aqui, novamente, encontramos nela o sentimento de apreensão ou “ação exterior”, como disse Henri Claude, acrescido de alucinações cenestésicas táteis e auditivas, e uma crença inabalável em duas forças opostas, cada uma tentando dominar a outra: Deus e o diabo.

Se dedicamos algum tempo aos casos de “possessão lúcida” ou delírio demonopático, é porque, para o psicólogo, eles contêm muitos traços instrutivos e, além disso, fornecem os mais claros sinais distintivos da falsa, contra a autêntica possessão demoníaca.

Não encontramos nesses pacientes todos os sinais de uma invasão por uma personalidade estranha ao seu ego – uma personalidade que se revela por compulsões, ações forçadas, inibições, por sons ouvidos perfeitamente claros, distintos e frequentemente, por inúmeras alucinações sensoriais e psíquicas e por sensações inefáveis de uma influência presente dentro ou ao redor deles? A essência dessa influência permanece um mistério até o dia em que o paciente se convence, durante um desses ataques de delírio, de que é de fato um espírito maligno que dirige suas ações, induz seus sentimentos e idéias, na verdade quem o possui e mantém ele à sua mercê.

Ora, esse delírio, que se baseia na divisão da personalidade, encontra-se em pessoas que não fingem possessão demoníaca, mas que sofrem dos tipos mais comuns de mania de perseguição, tão frequentemente encontrados em hospitais psiquiátricos.

Em ambas as categorias de sofredores, a característica mais importante é o sentimento de uma influência estrangeira que penetrou em sua personalidade e a domina – uma influência maligna na medida em que expressa o oposto da imagem que eles têm de si mesmos. Eles reagem contra essa influência por todos os meios possíveis, inclusive os do subconsciente; e é precisamente por esses caminhos dissimulados e indiretos que muitos de nossos pacientes criam involuntariamente uma segunda personalidade favorável que se opõe à má influência e luta contra ela, mantendo os pobres pacientes em um estado de luta dolorosa entre uma influência que consideram perniciosa e uma influência facilmente atribuída ao divino ou a algum outro poder oculto. Esse dilaceramento da consciência às vezes leva às consequências mais desastrosas, até mesmo à autodestruição.

Finalmente, devemos observar que se a nossa análise da psique frequentemente traz à tona algum distúrbio sexual em pacientes que sofrem de demonopatia, é porque a seus olhos o maior pecado está nas falhas ou perversões carnais, sendo o mais grave o homossexualismo.

Mas esta obsessão pelo pecado, que raramente abandona a pessoa que outrora o aprisionou, também aparece como uma força investida de uma personalidade viva. Isso se deve a uma tendência inata no homem, na qual Napoleão estava pensando quando disse: “o maior poder concedido ao homem é o de dar às coisas uma alma que elas não possuem”. Os pacientes que estamos considerando, seguindo a tendência natural de suas mentes, passam a identificar o diabo com o pecado do qual sentem mais aversão e que mais temem.

Assim, desde o início da psicopatia, podemos encontrar uma tendência a uma interpretação patológica das coisas, que pode apenas se desenvolver e aumentar, dando um colorido muito significativo ao transtorno mental. Em alguns indivíduos ditos “possessos” que observei, a capacidade interpretativa era tão ativa que cada percepção se tornava uma fonte de interpretações ou simbolizações muito diversas, muitas vezes inesperadas e extravagantes. Para recordar apenas um exemplo, nosso oficial aposentado, julgando-se perseguido diretamente pelo demônio, transformou todo objeto do mundo exterior em símbolo de alegria, de resistência ao espírito maligno, ou, ao contrário, em manifestação diabólica. Toda a sua atividade psicológica – que era grande – foi, portanto, quase totalmente utilizada na criação de um mundo simbólico cujos elementos ele tentou unir em algum tipo de harmonia geral, a fim de obter pelo menos um descanso espiritual temporário.

Como assinalamos anteriormente, ainda é impossível afirmar com precisão quais são as causas mais profundas subjacentes a esse tipo de psicose de influência ou perseguição demoníaca. Sem dúvida, a constituição original do paciente desempenha um papel importante, mas essa não é a solução completa; e se nos recusamos a admitir a tese de um automatismo mental condicionado por alguma estimulação complexamente engenhosa do córtex cerebral, então a evolução previsível do processo causal nos dá o direito de acreditar que um distúrbio psicofisiológico funcional está na origem dessa psicopatia, e que, combatendo-a, talvez possamos livrar nossos pacientes de seus indescritíveis sofrimentos.

O que devemos concluir desse relato? Certamente isto: que existem estados psicopáticos genuínos cujo sintoma principal é a noção de que a personalidade moral ou física, ou mesmo ambas, está possuída pelo diabo. Esses estados podem ser divididos em dois tipos bastante distintos: o primeiro é marcado pela ocorrência brutal e catastrófica da possessão, que se revela durante os transes ou crises severas, quando a consciência está em estado de dissolução mais ou menos completa; a segunda é mais complexa e consiste em uma psicose estritamente predeterminada, cujo desenvolvimento pode ser previsto e da qual se pode lançar um prognóstico decisivamente grave.

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