Prezados leitores, nesta postagem reproduziremos o que preparou o parapsicólogo e ex-provincial dos jesuítas, o lendário padre Edvino Augusto Friderichs – apologeta incansável de nosso país e candente articulista, sempre polêmico em combate às superstições sincréticas do Brasil. Autor de diversos livros – entre os quais podemos destacar “Panorama da parapsicologia ao alcance de todos”, “Casas mal-assombradas”, “Os méritos da parapsicologia no campo religioso” e um simpático romance de sabor bem brasileiro e nos mesmos moldes dos supersticiosos livros espíritas, mas muito bem católico, ensinando doutrina e parapsicologia: “Despacho de macumba contra um casal feliz”. NOTA: entenda o leitor este artigo como um documento histórico e repleto de referências. Se a Igreja Mãe e Mestra através da Santa Sé decidir por bem a canonização de Cícero Romão Batista, que assim o seja e nós o comemoraremos com júbilo filial.

 

A CONTROVERTIDA PERSONALIDADE DO PADRE CÍCERO

Percorrendo o Brasil de Norte a Sul com o fim de estudar os movimentos religiosos e pseudo-religiosos, não podia, naturalmente, deixar de visitar a arena de lutas do Padre Cicero Romão Batista, em Juazeiro do Norte, no Estado do Ceará. Já na Bahia ouvi freqiientes referências à figura lendária desse singular “sacerdote milagreiro”. Em Afogados, populoso subúrbio de Recife, encontrei uma “Farmácia Padre Cicero”.

Ao examinar um terreiro de uma mãe-de-santo, no mesmo bairro, deparei com o quadro do Padre Cicero entre os santos católicos mais venerados nos xangôs. A minha pergunta, ela explicou, ser o Padre Cicero adorado como os orixás e exus, por se tratar de um espirito muito adiantado, de grande luz. Insistindo eu no conceito “adorar”; ela o confirmou enfaticamente. Idêntica confirmação ouvi em muitas partes. Esse lamentável fato vem provar eloqiientemente, entre muitos outros, a grande confusão religiosa dominante por todo esse imenso Brasil, particularmente entre as classes humildes, sem possibilidade de se instruirem suficientemente.
No decurso de minhas pesquisas encontrei expostos à veneração pública imagens do Padre Cicero em muitas localidades, em numerosas firmas e casas comerciais, em inumeras casas particulares, em terreiros de mina e mata, em altares de umbanda, na igreja de Zé Bruno, no pescoço ou nos bolsos de muitos devotos. A figura do padre aparece em forma de quadros, estátuas, de estampas, de cartões, de santinhos ou medalhas. É impressionante a difusão gigantesca do culto, ou melhor diria, a idolatria supersticiosa tributada ao Padre Cicero.

Este abuso já atingiu tais proporções, que os ignorantes em matéria de religiao, que entre os romeiros, vindos dos Estados circunvizinhos, formam legiao, não raro afirmam e crêem com toda boa fé, ser o Padre Cicero uma pessoa da Santissima Trindade.
A personalidade do Padre Cicero é extremamente controvertida. As opinõoes sobre ele podem ser divididas em três categorias:
1) A dos admiradores;
2) a dos devotos e;
3) a dos opositores.

OS ADMIRADORES IMPARCIAIS

Estes não alimentam qualquer interesse em exagerar a favor ou a desfavor do referido padre.
A par dos inevitáveis defeitos, decorrentes da condição humana, imperfeita como tal, vêem nele, por outro lado boa fé, sinceridade, ingenuidade e candura e mesmo certo grau de santidade a externar-se em bondade, caridade, paciência, zelo apostólico, devoção a Nossa Senhora das Dores e a Jesus Sacramentado, enfim, no conjunto de suas virtudes sacerdotais.

Exortava indefessamente os seus fiéis a rezar o terço cada dia. E era tão decisiva a sua influência nesse particular, que até os ricos Ihe obedeciam de boa mente.

Haja vista um proprietário de vastas áreas de terras, nas imediações de Juazeiro do Norte, ainda hoje, (1964) nunca se recolhe à noite sem ter recitado o seu terço. Mesmo extenuado de cansaço e não obstante o adiantado da hora, ainda cumpre essa obrigação ao lembrar-se dela.

Da mesma forma gravou o Padre Cicero profundamente na alma do povo nordestino a devoção a Nossa Senhora das Dores. Ensinava o povo a ser bom, morigerado, a praticar a caridade, ajudando aos pobres, a não fazer mal a ninguém, a não roubar, a não matar, a não mentir, a não enganar nos negócios, a não praticar injustiças, em suma, encarecia o cumprimento dos deveres para com Deus e para com o próximo.

Sem favor, sua influência para o bem foi enorme, dado o seu prestígio de santo e milagreiro. Uma palavra do “padrinho” era Evangelho para os seus milhares de veneradores.
Não podemos deixar de reconhecer, com objetividade, todo bem operado pelo Padre Cicero. A justiça e a honestidade científica reclamam essa atitude.

QUE DIZEM OS EXTREMISTAS?

A segunda categoria de opiniões sobre o Padre Cicero e a dos romeiros, cuja ignorância foi geradora desse fanatismo religioso. Para esses peregrinos o Padre Cicero era santo mesmo, um grande taumaturgo, e por conseguinte, intocável.

Na presença deles ninguém pode atrever-se a criticar, a condenar, a duvidar sequer dos poderes do milagreiro. Não admitem a mínima atitude desabonadora, nem ativa nem passivamente. Senão veja o leitor este episódio.

O Vigário de Juazeiro do Norte, Mons. Joviniano Barreto, combatia o Padre Cicero só indiretamente, desrecomendando esse culto fanático e esclarecendo, em particular, às pessoas acerca dos pretensos milagres, ali acontecidos. Nunca o fez em público, conhecedor que era da reação negaiva de tal gesto, por parte dos romeiros.

Com louvável zelo pastoral empenhava-se por fazê-los compreender a ilusão, a ingenuidade, numa palavra, os fatores meramente naturals dos supostos milagres. Pois bem. Foi assassinado por um romeiro, quando esteve a conversar com o Sr. Bispo, por ocasiao do lançamento da pedra fundamental da igreja dos padres Capuchinhos, em Juazeiro. Deu-se essa lamentável ocorrencia em 1950.

O Padre Cicero era um “santo”, e por isso, na persuasão firmíssima dos peregrinos, curador poderoso de todas as doenças do corpo e da alma. Foi essa convicção granítica, sedimentada ja nas camadas de profundidade dos devotos, que originou as peregrinações em massa para Juazeiro,
fenômeno esse, que perdura até hoje com a mesma intensidade, após trinta anos de falecimento do patriarca. Hoje, em 1977, já são 43 anos.

Conta o Padre Cicero no número de seus devotados partidários, embora em mais reduzida escala e num extremismo mais moderado, pessoas de alto gabarito social, e por incrível que pareça, até entre as fileiras do clero. Eis uma prova, de como pode atuar uma sugestão coletiva das massas, até atingir, em seus círculos, a mais imprevisivel vastidão…

O MILAGRE DO SANGUE

O ponto de partida para a fama de santo adveio ao Padre Cicero do suposto milagre da hóstia a transformar-se no sangue visível de Jesus Cristo, na boca da devota Maria de Araújo, por ocasião da recepção da Sagrada Comunhão. Tratava-se de uma moça doente e histérica desde a sua infância, verificação essa, fácil de confirmar, como veremos mais adiante.

Para evidenciar o falso milagre, Mons. Manoel Candido dos Santos, atual Vigário de Baturité (1964), deu a comunhão a Maria de Araújo com uma hóstia não consagrada e não obstante repetiu-se o milagre (Pe. Furtado, Fortaleza).

O Pe. Antonio Gomes de Araújo, professor do Colégio Diocesano de Crato, fez diversas experiências com uma solução alcoólica e fenolftaleína, (subtância proveniente da ação e reação entre fenol comum e anidrido ftálico) conseguindo por essa via, apresentar o fenômeno da comunhão colorida como sangue, com admirável perfeição, a ponto de convencer os mais irredutíveis.

O próprio então Bispo de Fortaleza, D. Joaquim José Vieira, a cuja jurisdição pertencia naquela época Juazeiro do Norte, combatia tenazmente o ilusório milagre. Escreveu quatro cartas pastorais sobre o rumoroso caso, documentos esses, reveladores do seu bom senso, espírito eclesiástico e cientfico. Na primeira delas, publicada em 1893, apraz-me citar os seguintes tópicos:

…“O sangue aparecido nas sagradas particulas recebidas em comunhão por Maria de Araújo, não é, nem pode ser o sangue de Jesus Cristo; porquanto o tal sangue aparecido na boca de Araújo causava enjôo de estômago ao própri padre Cicero, conforme as expresses que no mesmo sacerdote empregou em carta que conservamos. Sria, pois, um ultraje ao Glorioso redentor da humanidad supor-se que um sangue corrupto e nauseabundo possa ser o seu sangue divino… Mas terá havido nos tais fatos do Juazeiro algum milagre de qualquer ordem que seja?…”

Em cerrada e tranquila argumentação de muitas páginas (quatro pastorais em nosso poder) conclui S. Exa. negativamente.

No que tange os “milagres” do Pe. Cicero em geral, é evidente, serem todos eles aparentes ou curas da categoria dos males funcionais, isto é, dependentes do sistema nervoso. Segundo verificação cientifica, realizada na França, como ja tivemos ensejo de frisar, 83% das doenças são desse tipo, isto é, curáveis parcial ou integralmente pelo poder maravilhoso da sugestão. No caso do Pe. Cicero temos o fator sugestão levado ao ápice, dado o seu fenomenal prestígio desfrutado perante as multidões.

Não consegui notícia de qualquer cura que não devesse ser registrada no catálogo dos fenômenos funcionais. De mais a mais Deus nunca permitiria a realização de milagres em abono de uma desobediência formal, de uma rebeldia contra a autoridade legitimamente constituida. O Sr. Bispo da Diocese não deixa de ser o legítimo sucessor dos apóstolos, e como tal, o ministro erepresentante de Deus, e isso tanto mais, se ele conta com o integral apoio de Roma, sede e alma da Igreja.

Por conseguinte, em Juazeiro do Padre Cicero, jamais houve verdadeiros milagres. Só pseudomilagres, pretensos milagres. O que houve, foram apenas curas por sugestão, atribuíveis ao ambiente e ao contágio mental das massas sugestionadas.

Essas sim, de boa mente o concedemos, foram inúmeras como estão a atestar os milhares de ex-votos e agradecimentos.

A OPINIAO DOS OPOSITORES

A terceira categoria de opiniões acerca do Padre Cicero e a dos opositores. Perquiramos pois, os fatos que depõem contra o patriarca de Juazeiro. O já citado Pe. Antônio, professor de História Geral e História do Brasil, do Colégio Diocesano do Bispado de Crato, ao qual pertence o território de Juazeiro do Norte, profundo conhecedor dos acontecimentos relacionados com o fenômeno Padre Cicero, autor de uma brochura sobre ele, falando da culpa objetiva do padre, me informa, serem três as faltas graves nas quais incorreu aquele sacerdote:

Primeira: intimado pelo seu Bispo, (portanto, pelo seu legítimo superior eclesiástico, ao qual jurou obediência e reverência ao longo da vida, no dia de sua ordenação sacerdotal), a sair de Juazeiro a uma distância de pelo menos 30 léguas, desobedeceu formalmente. A segunda falta grave a ser-lhe imputada: intimado a não receber mais fanáticos, isto é, romeiros que o tinham em conta de grande santo e milagreiro, resistiu até o fim da vida, cerca de 40 anos. Terceira falta grave: promulgada a sentença oficial da Igreja contra os pretensos milagres do Santíssimo Sacramento, referentes a Maria de Araújo, depois de provados os embustes, condenação formal, renovada três vezes, não se submeteu. Não revogou publicamente sua atitude de rebeldia.
Em face desses três pontos é preciso salientar, que cada um deles, por si só, já bastaria para condenar inapelavelmente um sacerdote como tal. Será de interesse para o leitor tomar conhecimento do “Decreto de 4 de abril de 1894, da Suprema Congregação da Santa Inquisição Romana Universal, de Roma”, condenando os pretensos milagres do Juazeiro, e considerando-os prodígios vãos e supersticiosos, segundo a comunicação feita ao Bispo D. Joaquim Jose Vieira, pelo Arcebispo de Petra, Internúncio apostólico no Brasil.

Rev. Sr. Bispo de Fortaleza:

Na congregação de quarta-feira, 4 de abril de 1894, discutidos os fatos que sucederam no Juazeiro, Diocese de Fotaleza, os Eminentíssimos e Reverendíssimos Padres da Santa Igreja Romana, Cardeais Inquisidores Gerais, pronunciaram, responderam e estatuíram o seguinte:
“Que os pretensos milagres e quejandas coisas sobrenaturais que se divulgam de Maria de Araújo são prodígios vãos e supersticiosos, e implicam gravissima e detestaável irreverência e ímpio abuso à Santíssima Eucaristia; por isso o Juizo Ápostólico os reprova e todos devem reprová-los, e
como reprovados e condenados cumpre serem havidos. Mas para se dar cabo de tais excessos e a um tempo se evitarem maiores males que deles podem nascer:

l) O Ordinário de Fortaleza e os outros do Brasil proibam por todos os meios ao seu alcance o concurso de peregrinos, ou as visitas e acessos dos curiosos a Maria de Arauújo e às outras mulheres incursas na culpabilidade da mesma causa.
2) Quaisquer escritos, livros ou opúsculos publicados, ou talvez que tal nao aconteça, por publicarem-se em defesa daquelas pessoas e daqueles fatos, tenham-se por condenados e proibidos, e sejam quanto antes possivel, recolhidos e queimados.
3) Tanto aos sacerdotes como aos leigos seja-lhes defesa tratar, por palavra ou por escrito, dos pretensos milagres supracitados.
4) Os panos ensangiientados e as Hóstias de que se falou, e todas as outras coisas ou reliquias consagradas, o mesmo Ordinário as tome e as queime”.

(Sing.) R. Cardinalis Monaco.

Isto foi o que a Suprema Congregação da Santa Inquisição Romana Universal pronunciou, respondeu e estatuiu, e é o que comunicamos em termos. Em cuja fé, sob nossa assinatura e nosso selo.

Dado em Petrópolis, na Residencia da Internunciatura Apostólica no dia 5 de junho de 1894.

✝ Fr. Jerônimo Maria, Arcebispo de Petra. Internúncio Apostólico.
(Cf. Revista do Instituto do Ceará — Tomo LXXV — Ano LXXV, pag. 293.)

 

Não obstante esta condenação emanada da suprema instância, continuaram a afluência dos peregrinos e os demais abusos desse movimento pseudo-religioso.

 

HAVERA ATENUANTES PARA O ACUSADO?

Em face da condenação formal e rigorosa da autoridade eclesiástica, tanto diocesana, como romana, que investiga a culpa objetiva, do fato externo, indaguemos pelas atenuantes, projetoras de luz mais suave e benigna sobre o Padre Cicero. Defrontamo-nos, então, com a sua culpa objetiva. Para garantirmos o êxito nessa busca, devemos bater a porta da Medicina. Neste ponto a palavra mais autorizada cabe ao Dr. Manoel do Nascimento Fernandes Távora, senador pelo Ceará e pai do atual governador do Estado (1964). Por espaço de 30 anos médico do Pe. Cicero, ninguém como ele nos poderá elucidar o complexo fenômeno.

DECLARAÇÃO MEDICA

Tecendo considerações sobre o estado mental do Pe. Cicero, escreve em carta ao Pe. Azaria Sobreira o Dr. Fernandes Távora:
“.. .Em 1889 surgiu o caso dos “milagres do Juazeiro”, de que foi protagonista a “beata” Maria de Araújo… Padre Cicero, homem simples e de parcos conhecimentos, acabou por convencer-se, também, de que havia naquele corriqueiro fenômeno de hemosialorréia (saliva sanguinolenta) algo de sobrenatural, que seria mesmo o sangue de Cristo. Diversos padres da regiao foram de igual parecer…

Iniciou-se, então, um novo estaágio na vida mental do Padre Cicero. Ele, que fora, atá aquela data, criatura humilima e absolutamente submissa aos seus superiores hierárquicos, insurgiu-se publicamente contra as decisões e ordens do Bispo diocesano, proclamando ser milagre aquilo que D. Joaquim condenara como superstição, incompatível, por conseguinte, com os dogmas e ensinamentos da Igreja.

Porque assim agiu o padre, contrariando todo o seu passado de submissão e de renúncia? Muitos interpretaram essa brusca mudança como o despertar de paixões mais ou menos bastardas, sobressaindo entre elas, o incontido desejo de ouro e de poder, porque, com o prestígio incontrastável que lhe adveio igualmente lhe chegou a abastança, senão a riqueza.
Houve nesse modo de pensar um grave erro de interpretação, acarretando uma injustiça, que deve ser reparada, sobretudo por aqueles que se propõem a falar para a posteridade. O capelão de Juazeiro, cujo equilibrio mental sempre fora precário (como seria fácil de provar com fatos diversos), sofreu naquele rijo combate entre a sua crendice e a autoridade diocesana, um choque profundo, que lhe transformou por completo a personalidade.

Absolutamente convencido do milagre (a transformação da hóstia em sangue) e amparado pela opinião de alguns sacerdotes e de representantes da ciência oficial, o Padre Cicero não concebia como alguém pudesse duvidar daquilo que lhe parecia evidente, a não ser que, propositadamente, o quisessem hostilizar, e acabou mui logicamente, por insurgir-se, primeiramente contra o Bispo e, posteriormente contra a Santa Sé. Em relação a esta última, a resistencia foi passiva, mas nem por isso, deixou de exprimir uma rebeldia.

Mas quem assim agia já não era o Padre Cicero, humilde, desprendido e submisso de outros tempos, senão o homem mentalmente transformado, que, vítima de fortíssima ilusão, fugira inteiramente às realidades do meio em que vivia e, portanto, dele se alienara. Essa dupla interpretação errônea do fenômeno fisiopatológico (a hemosiolarréia) e do psicológico (o pensamento dos seus superiores), foi o ponto de partida, o germe do seu delírio. Porque acreditara estar com a verdade, rebelou-se contra os que nela naao criam, e, em torno dessa falsa premissa, se desenvolveram os seus raciocinios, aparentemente justificáveis, mas na verdade, tão inconsistentes como a base em que se firmavam.

Os atos posteriores de sua vida nao poderiam ter outra diretriz senão aquela que, logicamente, decorria do falso ponto de partida, porque, nos doentes dessa espécie, o raciocinio é, mais ou menos perfeito, não lhes faltando mesmo uma certa argúcia para despistar os que procuram sondar-lhes o espírito. As modificações mentais vieram naturalmente, como corolario da nova personalidade: o apego ao dinheiro, a transformação da indumentária, o gosto pelo poder, a iniciação politica, a convicção do seu prestígio etc.

Tudo isso é bem de ver, inteiramente contrário aos seus antigos hábitos e pendores; mas agora, reclamado pela nova mentalidade, palco em que se agitavam os mais desencontrados sentimentos, afinal cristalizados num claro delírio de grandezas. Essa positiva mutação da personalidade do velho sacerdote, evidentíssima aos olhos de quantos o haviam conhecido em anos passados, não podia ser apreendida pelos que iam chegando, de todos os quadrantes do pais, à futura Meca nordestina.

Encontraram-se assim, em Juazeiro, naquele momento histórico, duas poderosas tendências que deveriam somar-se, seguindo o mesmo rumo, como a resultante de um grande paralelograma de forças psíquicas. Entre essa gente adventicia e o Padre Cicero, estabeleceu-se uma corrente de forte simpatia, logo transformada em solidariedade absoluta, cujos elos, fundidos no cadinho de uma admiração ilimitada, foram constituídos desse duplo material imponderável, mas indestrutível: a crença ingênua e insopitável da massa ignara, que precisava adorar, e a profunda convicção do delirante, que se julgava merecedor dessa adoração.

Se a maioria dos contemporâneos do Padre Cicero não logrou decifrar-lhe a psicologia bizarra, embora nao faltassem homens de regular cultura no Ceará e na própria zona em que vivia, muito menos o poderia fazer a multidão fanática, remansada na certeza feliz da ignorância, que não conhece os acúleos da dúvida e para a qual ele era nada menos que um semideus. É de justiça ressaltar que o povo do Cariri, na sua maioria, não acreditava nos chamados milagres do Juazeiro, fosse por influição de alguns dos seus vigários, fosse pelo natural antagonismo que logo se estabeleceu entre autóctones e ádvenas.

No que tange à população mais culta, o fato era ainda mais acentuado. Conheci um proprietário nas imediações de Juazeiro, que quando mais intenso era o fanatismo dos romeiros, proferiu com tanta segurança quanta ousadia, estas palavras, verdadeiramente notáveis: “Ninguém se engane. O Padre Cicero começou como missionário, breve será milionario e acabará revolucionário”.
A sentença do arguto juazeirense não foi somente uma vaga profecia; foi, antes de tudo, um admirável prognóstico, tão perfeito, que o mais abalizado psiquiatra nao o faria melhor. Lembra o meu ilustre amigo haver sido eu talvez o primeiro a classificar o estado mental do patriarca do Juazeiro, incluindo-o no quadro da paranóia. Creio ser verdade o que presume, pois naquela época não me consta que alguém fizesse esse ou outro qualquer diagnóstico, mesmo porque nem todos queriam arrostar os percalços de colocar o Padre Cicero no rol dos insanos.

Convencido de que todo problema religioso e social de Juazeiro girava em tomo da incompreensão do verdadeiro estado mental do seu dirigente, sempre que se me azava
oportunidade, manifestava a minha opinião a D. Quintino Rodrigues e outras autoridades civis e eclesiásticas, no intuito (que me parecia caridoso) de isentar a imensa responsabilidade moral do velho e honrado sacerdote, que, na verdade, já não podia responder pelos seus atos…
Se analisarmos com atenção, a vida do Pe. Cicero, verificamos que ela foi sempre deficiente, não só em relação à mentalidade, como a outras funções fisiológicas. Bastariam, para justificar esta asserção, os constantes êxtases em que caía, durante horas, e a sua absoluta castidade ou, meIhor, frigidez, por todos proclamada. E, realmente, nunca houve quern lobrigasse, na longa vida do velho sacerdote, a sombra de uma mulher…

Foi nesse organismo mioprágico que o choque profundo, do desentendimento com as autoridades eclesiásticas evidenciou a paranóia. Não fosse isso, muito provavelmente, Juazeiro e o Padre Cicero nao teriam história…

Após esse evento, tudo nele mudou: assumiu uma atitude de rebeldia contra o Bispo diocesano, assegurando ao povo serem verdadeiros milagres (uns fenômenos de vulgar pitiatismo), em que não acreditara nem poderia acreditar aquela esclarecida autoridade eclesiástica; continuou a incentivar, dessarte, a crendice cega das populações ignorantes; cuidou melhor da sua indumentária; não mais lhe repugnaram os bens materiais, que se prontificou a receber, como procurador de Nossa Senhora das Dores: não desdenhou mais o dinheiro, pelo qual já não experimentava a idiossincrasia de outrora; sentiu-se envaidecido do seu prestígio e até dos restritos conhecimentos, que sempre procurava exibir; e, afinal, deixou-se arrastar na torrente política, que o levou a sedição.

Pouco importa saber se essa ultima atitude se originou do desejo de engrandecer Juazeiro, ou das insistentes e mirabolantes sugestões do Dr. Floro Bartolomeu, visando os pingues proventos que dela lhe advieram. De qualquer forma, ela significou a hipertrofia de uma personalidade que procurava expandir-se num anseio de glória e de poder: Era a velada expressão do delírio de grandezas, que, nos anos subsequentes, se manifestou em toda plenitude. Dois fatos bastarão para prová-lo, sem a menor sombra de duvida.

Conversando com um ilustre oficial do Exército, que fora a Juazeiro em missaao especial, disse-lhe o Padre Cicero, com a maior naturalidade, querendo provar o seu prestígio: “Quando houve aquela grande perseguição aos judeus, na Rússia, eu telegrafei ao Czar e ele imediatamente mandou suspendê-la. Também quando foi da guerra dos Balcãs, telegrafei ao imperador Francisco José, da Áustria, pedindo-lhe que interviesse no sentido de por termo àquela luta cruel, e tive o prazer de ser atendido, cessando logo a guerra”.

Falava com os mais poderosos monarcas da Europa, como de igual para igual, e o fazia com inteira convicção… Essa convicção do seu prestígio incontrastável é ainda confirmada pelo seguinte fato: numa das vezes que Lampião esteve em Juazeiro, recebeu do Pe. Cicero, ajoelhado a seus pés, um cartão, concebido nestes termos:

“Senhores Engenheiros da Fábrica do Coco Babaçu, em Maranhão. É portador do presente o Sr. Virgolino Ferreira, com outros companheiros que peço colocá-los em seus trabalhos, pelo que agradece o velho sacerdote Padre Cicero”.

Logo após, disse a um seu amigo: “Homem, acabei de converter Lampião. Ele vai se colocar nos trabalhos da Usina de Coco Babaçu, no Maranhão, e lá ninguém o perseguirá, e está o homem regenerado”! E sublinhou essa declaração com um sorriso de vitória.

Padre Cicero, entretanto, nem sequer conhecia os tais engenheiros aos quais se dirigira, solicitando a colocação do cangaceiro e seus sequazes, e nem mesmo sabia onde estava localizada a usina a que se referia. Estava certo, porém, de que seria imediatamente atendido e que ninguém tocaria nos seus recomendados… Lampião dirigiu-se, realmente, para o Maranhão, mas a polícia piauiense fê-lo voltar aos sertões baianos.

Aí, temos, pois, todos os dados para resolver o problema psíquico em apreço: terreno mental mioprágico, traduzido num conjunto de estados psicopáticos constitucionais, degenerativos; transformação profunda da personalidade, sem notáveis perturbções da vontade e da emotividade; delírios de perseguição, algo velado, e de grandeza, evidentíssimo; organização de um sistema interpretativo, não alucinatório, com prevalência de uma idéia fixa, que lhe empolgou o espírito e orientou toda a sua atividade religiosa e social, marcha lenta e crônica; incurabilidade.

Ante sintomatologia tão completa, não sei como possa alguém cogitar de outro diagnóstico que não o de paranóia. Eu não encontro motivo para discrepar do que formulei, há tantos anos, e agora reitero, com integral convicção…

Historiadores e sociólogos indagarão quais os benefícios decorrentes da extraordinária influência exercida pelo Padre Cicero sobre populações que, por cerca de meio século, ante ele se prostraram, dele recebendo o santo e a senha. Infelizmente toda essa imensa força e prestígio pessoal, os maiores de que já dispôs um homem, neste país, resultaram inúteis. A não ser um certo incremento da lavoura, nas regiões circunvizinhas, naturalmente derivado da abundância de braços, nenhum outro beneficio foi realizado pelas sucessivas ondas humanas que, durante décadas, se dobraram aos pés do taumaturgo, sem par, na nossa história.

No campo social, nenhum avanço, porque se não abriram as avenidas da instrução aos broncos ádvenas; na esfera religiosa, a petrificação dos espíritos, na imobilidade do fanatismo. O meu ilustre amigo professor Lourenço Filho afirma que não pôde conseguir a boa vontade do Padre Cicero, no sentido de incrementar a instrução primaria em Juazeiro.

Eis um outro aparente paradoxo, só compreensível e explicável pelos que conheceram intimamente os homens e coisas daquela terra. Padre Cicero sempre amou a instrução e desejou vê-la difundida em sua cidade natal, como pôderão dar testemunho diversos moços, que, a expensas dele, se educaram, desde a escola primária aos cursos superiores. Se não atendeu ao esforçado e digno Diretor da Instruçãoo Pública do Ceará, terá sido por causa estranha a sua vontade.

Havia uma força maior que o impedia de fazô-lo: Floro Bartolomeu, a quem não agradava nem convinha qualquer tentativa no sentido de diminuir a treva mental dos romeiros, condição indispensável ao prestígio do Padre Cicero, bem como á medrança e ao futuro do seu valido.
A este e não ao velho enfermo devem os homens pedir contas pelo mal que se fez, como pelo bem que se deixou de fazer, em Juazeiro, num grande lapso. Padre Cicero vivia a sonhar com toda a sorte de melhoramentos para o seu município, planejando fábricas, colégios, orfanatos e até o acantonamento de uma unidade do Exército, chegando a oferecer terreno para um quartel, como para um campo de aviação. Mas, ou por que o impedissem as sugestões e conselhos interesseiros do seu alter ego, ou pela falta de continuidade das suas resoluçõe e pensamentos, nunca chegou a realizar esses desejos, tantas vezes manifestados.

Entretanto, o fato de haver legado todos os seus bens aos padres salesianos, com a condição expressa de fundarem e manterem dois colegios para crianças pobres, em Juazeiro, confirma plenamente esse juízo. E assim, de tudo que lhe deram, uma parte distribuiu de esmolas intra vitam, a outra legou às gerações futuras… Excluídas as parcelas que os exploradores de todos os matizes lhe extorquiram, o que do povo recebeu a ele ou a seus filhos restituiu, com perfeita lisura.

Outro houvesse sido o mentor do Padre Cicero e este, convenientemente orientado, ter-se-ia transformado num incomparável instrumento de progresso e civilização, nao só para o Cariri, como para todo Nordeste. Dominado, porém, por um homem despido de escrúpulos, e profundamente ambicioso, foi quase uma força cega da natureza, produzindo, não raro, malefícios, onde, certamente quisera fazer o bem…” (Algo de minha vida — pág. 207 e separata da “Revista do Instituto do Ceará” — Tomo LVII — Ano LVII 1943.)

Em face do exposto neste precioso documento, já nos sentimos capacitados a formular uma sentença bem mais benigna sobre o taumaturgo do Cariri. Se bem que a paranóia nao isente um indivíduo do senso de responsabilidade e da esperteza, torna-se contudo difícil formular um juízo exato sobre o grau de culpabilidade remanescente. Sempre toparemos com novos imponderáveis, que subtraem esse julgamento à nossa capacidade analítica. O microcosmo do espírito humano tern meandros tão complicados e labirintos tao complexos, que somente Deus pode sondá-los, mediante a luz divina de sua onisciência. Não está, pois, excluída a hipótese de ser mínima a culpa subjetiva do Pe. Cicero; da mesma forma como é normalmente admissível, seja ela maior do que se supõe.

É a cidade mais populosa do Ceará, depois da capital. Não há duvida nenhuma, de ser atribuível esse surto ao movimento em tomo do Padre Cicero. Só em novembro, mês dos finados, os peregrinos vindos de Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas, Piaui e Maranhão, atingem uma cifra superior a 30.000, sem contar os milhares de romeiros que demandam à “cidade santa” em outras épocas do ano.

O comércio de Juazeiro é talvez o maior interessado nesse movimento de romeiros, pois sabem muito bem, ser enorme a porcentagem de peregrinos que fazem anualmente suas grandes compras exclusivamente na cidade do Pe. Cicero. Nela, com efeito, não se encontra casa de comércio sem o retrato, quadro, escultura ou estátua do padroeiro. O estabelecimento comercial que não o tivesse, correria risco de falência, por falta de freguesia.

Em 1959 um comerciante de Juazeiro comprou em São Paulo para um milhão de cruzeiros de continhas para rosários. Em Juazeiro encarregou 22 mulheres para enfiá-las. Apurou um lucro líquido de dois milhões de cruzeiros (informação do Pe. Antônio G. de Araújo).
Não é exagero afirmar, que Juazeiro do Norte vive das peregrinações. É a meca do sertão brasileiro do Nordeste.

Em que pese todo progresso da moderna cidade de Juazeiro com a sua ótima luz elétrica, provinda da cachoeira de Paulo Afonso e seus 100.000 habitantes, (1964) a devoção ao Padre Cicero não decresceu e continuará previsivelmente a florescer por muitos decênios, até estar extirpada, num futuro remoto, a ignorância religiosa do nosso povo.

ATITUDE DO CATOLICO — ORIENTAÇÃO

Analisando essa mentalidade mística, mal orientada, ávida do maravilhoso, de um lado, e as orientações claras, os pronunciamentos inequívocos da Igreja, por outra, só resta uma atitude a adotar a todo crente consciencioso: a obedieência, o filial acatamento às decisões emanadas da suprema autoridade espiritual.

O “sentire cum ecclesia” (sentir com a Igreja), o coração bem formado de um católico esclarecido, transforma esse dever numa questão de honra, num imperativo categórico voluntário.
É escusado sublinhar, que não havendo mais liberdade de escolher partido a favor ou contra o Pe. Cicero, uma vez decidida e conhecida a sentença da Igreja, com isso, evidentemente, não estão condenados os inúmeros atos de virtude praticados pelo Pe. Cicero durante a sua longa existência. A sua paciência, a sua caridade, a sua pureza, o seu zelo pela prática do bem, as suas exortações e advertências dirigidas ao povo, todas as ações boas lhe serão creditadas em seu favor, nao só pelo Juiz onisciente, senão tamb[em pelos homens, dotados de imparcialidade.

LITERATURA
O Padre e a Beata por Nertan Macedo, contendo além do material precioso de sua autoria, as quatro pastorais do Bispo diocesano. Revista do Instituto do Ceará — Tomo LXXV — Ano LXXV Jan. Dez. 1961. Documentos sobre a Questão Religiosa do Juazeiro, págs. 266-297 incl. Separata da “Revista do Instituto do Ceara” Tomo LVII Ano LVII (1943). Considerações sobre o estado mental do P. Cicero pelo Dr. Fernandes Tavora. (Carta ao P. Azarias Sobreira).
Juazeiro do P. Cicero por M. B. Lourenço Filho — 3.* edição — Melhoramentos. Obra alentada de 217 págs., formato grande. Cangaceiros e fanáticos por Rui Bacó, Ed. Civ. Brasileira S. A., Rio de J., Misticismo e Religiao, Aspectos do Sebastianismo Nordestino por Waldemar Valente (Inst. Joaquim Nabuco de Pesquisas sociais). Religião, Crença e atitude por Gonçalves Fernandes (Inst. J. Nabuco de P. S.). Lampião e seus Cabras por Luis Lima etc.

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